De novo a direita no poder na América do Sul. Não é uma nova direita, ainda que seja assim a forma com que tentam se vender eleitoralmente. É a mesma que aplicou as clássicas receitas econômicas neoliberais dos anos 1980 e 1990, e agora emerge outra vez no cenário para reforçá-las.
A cartilha resulta conhecida: aumento de tarifas dos serviços básicos, cortes draconianos nos investimentos sociais, privatizações a preços irrisórios, venda de ativos, desregulamentação dos mercados financeiros, privilégio ao pagamento da dívida – com as já conhecidas consequências para as pessoas mais pobres e vulneráveis –, todas elas medidas que fazem parte integral deste modelo.
O Brasil voltou ao Mapa da Fome – depois de haver saído dele em 2014 – e o que pese a brutal desregulamentação do trabalho e o congelamento dos gastos sociais que fizeram o governo de Michel Temer, pelo quarto ano consecutivo, não alcançou o objetivo de que a economia cresça a patamares de real recuperação. Na Argentina, com aumentos de até 375% em tarifas de serviços básicos e inflação em 25%, há novos 1,5 milhão de pessoas pobres no país.
A direita "renovada" se voltou também aos lugares comuns e a receitas de velho tipo em relação à política. A combinação de judicialização e supermidiatização da política, organizadas em torno da corrupção como eixo central.
Ou seja: os juízes investigam e sancionam alguns casos reais de corrupção, mas sempre de maneira seletiva e dirigida; enquanto os meios de comunicação e novas plataformas comunicativas – redes sociais – desenvolvem uma estratégia de superexposição dos casos, nos quais opinologistas e jornalistas – braços ideológicos do novo bloco de poder – se convertem em co-juízes dos casos: filtram informação sujeita a segredo judicial, viabilizam de acordo com a conveniência algumas corrupções enquanto minimizam ou escondem outras, lincham midiaticamente os marcados pelos novos campeões da justiça, provenientes, obviamente, da direita no poder.
A eles se soma uma boa parte da cidadania na figura de enxame de modernos "torquemadas" [Torquemada era um dos principais líderes da inquisição espanhola] que povoam as redes sociais ditando sentenças em uma espécie de cenário inquisitorial digital.
Esta estratégia resultou exitosa, sobretudo porque permite que os problemas de fundo se mantenham intactos. Ninguém em sã consciência pode se opor ao combate à corrupção, mas as dúvidas sobre o alcance desta batalha emergem, evidentemente, por seus limitados alvos.
De fato, se investigou-se, encarcerou e até sentenciou, de acordo com cada caso, empresários e políticos. Muito bem. Mas a pergunta que se mantém é o que vem acontecendo com os bancos e instituições financeiras, por onde anda o dinheiro? O que vem acontecendo os funcionários dos bancos que os gestionam? – ou vamos imaginar que tudo foi transportado em malas e helicópteros?
Sem dúvida, esta trama permanece oculta e baixo as leis vigentes, em muitos casos sem qualquer possibilidade de alguma sanção. Tampouco a sociedade nem a opinião pública se manifestam a respeito desse assunto, no geral.
Pode-se lançar a hipótese de que estas duas estratégias de gestão política – judicialização seletiva e aproveitamento até o limite da midiatização – serviram de exemplo ao regime atual do Equador?
Sobre o presidente Lenín Moreno pode se ler como uma estratégia muito afinada – ainda que arriscada – para se separar da figura do seu antecessor Rafael Correa, tentando, ao mesmo tempo, construir seu próprio capital político operando sobre a tradicional base política clientelar do Equador, cuja gestão passou de Abdalá Bucaram [presidente populista entre 1996 e 1997], à Sociedad Patriótica [partido de direita, de natureza populista, que surgiu após um golpe de Estado] e daí – sem grandes rupturas – a Correa e ao Aliança PAIS (AP).
A novidade é que, nesta ampliação de sua base política, Moreno tentou apelar também a novos segmentos sociais: os votantes de banqueiros, as classes médias nucleadas em torno da luta contra a corrupção e, no limite, um novo pacto com as elites velado na imagem de um diálogo social mais amplo.
Em sua implementação estratégica, Moreno conta com as previsíveis e viscerais reações do ex-presidente e de sua base mais radical, frente a qualquer suposto "desvio" e "traição" a seu governo. De cara aos processos iniciados por corrupção contra funcionários do anterior governo, conta com o consenso e amplo apoio midiático, assim como com um cansaço dos cidadãos sobre este último ponto.
Dissemos, na primeira versão deste artigo, que fica por ver se em uma escalada maior das tensões e desacordos, a separação entre Correa e Moreno torna-se um divórcio e que parte do Movimento Aliança PAIS (Pátria Altiva e Soberana) poderia ser levada por cada um.
Na noite dessa terça-feira (31), a Direção Nacional do Aliança PAIS destitui Lenín Moreno como presidente da organização. A resolução justifica a decisão por ausência reiterada a reuniões, e faltas graves relacionadas com a "realização de ações políticas que objetivamente beneficiem a pessoas ou grupos opositores à Revolução Cidadã; manifestar publicamente critérios divergentes em menosprezo aos princípios e decisões do movimento e realizar atividades que atentem à unidade orgânica do movimento".
Ao mesmo tempo, a Direção Nacional nomeou como novo presidente da organização Ricardo Patiño, quem havia sido seu Secretário Executivo entre 2006 e 2010. Uma figura muito próxima a Correa, ocupou postos chave durante os dez anos de seu governo: foi chanceler e ministro das pastas de Economia, Defesa e Política. Exerceu como assessor de alto nível de Moreno por poucos meses, de julho a agosto deste ano. Renunciou ao cargo por desavenças com o mandatário.
Imediatamente o Birô Político da Aliança PAIS, encabeçado pela vice-presidente encarregada María Alejandra Vicuña e o presidente da Assembleia Nacional, José Serrano, e que conta com a participação de vários ministros, não reconheceu a decisão tomada pela Direção Nacional, indicando que somente a Convenção Nacional pode tomar uma medida como esta.
Além disso, sinalizaram erros processuais na resolução, pois logo após tomarem a medida de destituir Moreno, enviam o caso para análise e sanção da Comissão Nacional de Ética e Disciplina. A direção do partido em Guayas, o maior estado do país, concedeu duas coletivas de imprensa mostrando que está dividida entre os que apoiam Correa e os que são partidários de Moreno.
Na quarta-feira (1°), um juiz de Garantias Penais de Quito declarou nula a decisão da direção nacional do partido.
Se a bancada do partido na Assembleia Nacional também se divide, o presidente vai ter um cenário complexo de governabilidade, pois perderia a maioria simples (74 das 137 cadeiras) que tem atualmente a Aliança PAIS, o que forçaria uma pactuação com partidos de direita.
Enquanto a trama midiática de corrupção, diálogo, consulta e a potencial divisão do partido acontece à luz do olhar público, outros temas menores – de fato, bastante substanciais – permanecem na sombra. Os onipresentes pactos com as elites são, por assim dizer de alguma maneira, camuflados entre muitos pequenos acordos para repartir parcelas minúsculas de poder entre diversos atores, movimentos sociais, organizações populares, grupos de pressão, todos amparados baixo o guarda-chuva do diálogo.
Por outro lado: chega ou não chega o FMI? Parecia que dependia do dia e do humor do funcionário. Por fim, veio, mas quase nada foi dito sobre os resultados da missão no país.
A economia do país é péssima, mais ou menos, é um completo desastre ou não estava tão ruim? Em que ponto estamos? A maior opacidade possível, não só de mensagem, senão da gestão pública, que parece ser uma das marcas do atual governo.
A consulta, neste momento em análise por parte da Corte Constitucional, segue um esquema parecido. Perguntas de trâmite, alguma nítidas, outras nebulosas – algumas, inclusive, que não precisavam de consulta – todas jogando empaticamente com a ideia de que as pessoas decidem e participam, enquanto, ao mesmo tempo e nos bastidores, resolvem, evidentemente, certos dilemas políticos vitais ao atual presidente.
Se ganha o SIM em todas as perguntas, Moreno terá certamente um melhor cenário para governar, se perde em alguma (por exemplo, a de mais-valia, nitidamente parte do pacto com as elites econômicas) não será realmente uma perda para ele, pois poderá dizer a seus novos aliados: tentei, mas o povo não quer.
Somente duas perguntas são essenciais: a proibição de reeleição – em stricto sensu: aplicação – indefinida que está claramente dirigida a eliminar a possibilidade de que Correa se candidate novamente à Presidência e, nesse sentido, é parte da operação de posicionamento político de Moreno frente a um antecessor tão poderoso como Correa, e a pergunta que pretende reformar o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social (CPCCS).
Esta pergunta, de ganhar o sim, permitiria nomear integrantes interinos do CPCCS que fiscalizem as autoridades de controle (Procurador-Geral da República, Controladoria Geral da União, entre outros) nomeadas pelos integrantes anteriores.
Agora, sem fazer uma reforma das funções do órgão ou de toda a Função de Transparência e Controle Social, resta uma pergunta envolve basicamente um movimento político que lhe dará uma margem de manobra vital, com a qual não contaria de outra maneira. No entanto, isso resolveria o problema de fundo de um desenho institucional dessa função que não conseguiu funcionar como deveria? Tendo a pensar que não.
Ainda que não ganhe em todas as perguntas, a consulta em si, isto lhe assegura um mecanismo político que reforça sua capacidade de gestão política e significa uma vitória em termos de consolidar seu espaço no marco da mudança de governo, como mostram seus altíssimos níveis de aprovação.
A partir de seu oponente político nas últimas eleições, o banqueiro Guillermo Lasso [que disputou o segundo turno com Moreno], passando pelos mais famosos quadros da velha partidocracia, até os nichos de opinião de seus votantes, a consulta conta com um amplo respaldo eleitoral e político.
A estratégia de criar um marco de amplo diálogo, consultas e participação tem sido um hábil movimento de distração para que todos os atores se sentem para discutir nesse marco. Quem construiu esse marco? E a quais interesses respondem, é parte da opacidade que ainda tentamos elucidar.
Por outro lado, a política econômica não acaba de se desvelar, ainda que, por exemplo, a medida de permitir a participação de grupos privados na gestão do dinheiro eletrônico (diante do fracasso do Banco Central do Equador em administrar e promover eficientemente isso é certo), ou os retrocessos anunciados na política impositiva, marca um panorama de direitização maior em relação àquela que vinha acontecendo com o governo anterior, e instaura um risco importante para as contas públicas, tanto no tema do dinheiro eletrônico como no tema da reestruturação impositiva.
Os passos seguintes da política econômica são os que acabaram de dar sentido à consulta e à estratégia política em geral. Logo, demonstra que, como no resto do continente, o combate seletivo à corrupção no cenário de midiatização que impera rende bons resultados políticos. Neste caso particular, aparece para consolidar um governo supostamente progressista. Se o é realmente, ou em que medida o é, só se saberá no futuro.
Uma das hipóteses é a de implementação de um grande pacote de caráter neoliberal logo após ganhar a consulta. Para indicá-lo, não devemos observar somente o nível de investimento social e se promovem processos de distribuição e redistribuição de renda, senão, sobretudo, qual e de que tamanho é a parcelo que se entregará à burguesia. Isto irá dizer muito da "alma" do atual governo. Enquanto isso, seguiremos tentando desvendar os discursos – cada vez com maior opacidade – dos líderes políticos.
Edição: Vivian Fernandes | Tradução: Vivian Fernandes