Uma mulher foi assassinada a cada duas horas em 2016 no Brasil. É o que diz o levantamento feito pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado no final de outubro.
Em números absolutos, 4.657 mulheres perderam a vida no país. Apesar disso, apenas 533 casos foram classificados como feminicídios mesmo após uma lei de 2015 obrigar registrar mortes de mulheres dentro de suas casas, com violência doméstica e por motivação de gênero.
Embora não traga o recorte de raça e classe por falta de base de dados, outras pesquisas e estudos apontam que o assassinato de mulheres negras e pobres é o mais recorrente.
Para Bruna Cristina Jaquetto Pereira, pesquisadora visitante da Universidade de Berkeley, na Califórnia, nos Estados Unidos, a ausência dos dados ajuda a sociedade a negar as desigualdades fundamentais relacionadas a gênero, raça e classe.
"Nós percebemos que a violência no Brasil não é um fenômeno que atinge a todas da mesma forma, muito pelo contrário, ela se constrói como um fenômeno social articulado em torno de gênero e raça, ou seja, a partir do racismo e do patriarcado", diz.
A pesquisadora alerta que constantemente se fala de feminicídio apenas como crime motivado por gênero, mas, no caso de mulheres negras, a questão racial deve ser levada em conta, uma vez que elas são as maiores vítimas dessa violência.
O Mapa da Violência 2015 mostra que o número de homicídios de brancas caiu, já o assassinato de negras aumentou: em 2003, morreram assassinadas 23% mais negras do que brancas. O índice foi crescendo lentamente ao longo dos anos, para, em 2013, chegar a 67%.
Bruna, em seu livro "Tramas e dramas de gênero e de cor", fruto de sua pesquisa de mestrado, investigou nos relatos de mulheres negras quais questões raciais presentes na violência que sofreram: "Não estamos percebendo as vinculações desses homicídios com o racismo brasileiro, quer dizer, não podemos definir um eixo prioritário entre gênero e raça. No caso das mulheres negras, nós temos que entender que as duas questões estão operantes quando tratamos de violência".
A coordenadora auxiliar do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Paula Sant'Anna Machado de Souza, trabalhou por três anos na Vara de violência doméstica de São Miguel, bairro da zona leste da cidade de São Paulo. Durante esse trabalho, ela enxergou pontos que difereciam o acesso à Justiça de mulheres brancas e não brancas:
"Essas mulheres negras têm uma série de obstáculos de acesso à Justiça mais do que mulheres brancas. Toda essa política que a gente vem discutindo desde a criação da Lei Maria da Penha, ela ainda tem uma cor, uma classe social à qual é destinada".
Para a defensora pública, outro agravante nessa equação é a violência policial que, segundo ela, é uma realidade na vida das mulheres negras e pobres.
"As mulheres que estão na periferia não confiam na polícia, num momento de vulnerabilidade, muitas vezes elas não recorrem a esses atores que no dia a dia são violadores".
Souza acredita que a violência contra as mulheres deixa evidente todas as falhas das políticas públicas que não chegam à mulher negra e periférica. David Marques, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também tem essa percepção: "Existe um cenário de deterioração das políticas públicas de segurança, as estratégias que historicamente foram adotadas nesse campo não estão dando certo, ou seja, nunca teve tantas pessoas presas e mortas pelas polícias, no entanto o sentimento de insegurança da população permanece assim como os indicadores criminais crescem".
Edição: Vanessa Martina Silva