Judiciário

Comitês internacionais vão analisar abusos da Lava Jato; entenda o que está em jogo

Advogados citam caso Lula e aguardam respostas da ONU e da OEA sobre possíveis violações de direitos humanos na operação

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |

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Cristiano Zanin (esq.) e Geoffrey Robertson (dir.) em frente ao Comitê da ONU, em Genebra
Cristiano Zanin (esq.) e Geoffrey Robertson (dir.) em frente ao Comitê da ONU, em Genebra - Ricardo Stuckert

Dois meses atrás, o advogado Rubens Francisco desembarcou em Washington, nos Estados Unidos, acompanhado da colega Cibele Braga. Por entre bandeiras a meio mastro, em homenagem aos 16 anos do atentado de 11 de setembro, eles se dirigiram à sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para um pedido de socorro.

O requerimento, assinado pela dupla e entregue à Comissão, contém uma série de denúncias sobre a operação Lava Jato no Brasil. Segundo o texto, o sistema judiciário pós-Lava Jato é “uma afronta direta aos preceitos fundamentais do Pacto de San José da Costa Rica”, e os processos em questão “esvaziam as garantias constitucionais da Carta Magna brasileira de 1988”.

Criada em 1959, a CIDH é um órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA) e está composta por sete membros independentes, que não representam nenhum país em particular e são eleitos por uma assembleia.

O Pacto a que o advogado se refere é um tratado assinado pelos 35 países membros da OEA, que entrou em vigor em 1978 na Costa Rica. Entre os direitos civis e políticos previstos no tratado, estão o direito à liberdade pessoal, às garantias judiciais e à proteção da honra.

Buraco sem fundo

De volta ao Brasil, Rubens Francisco cita a condenação do ex-presidente Lula (PT) em primeira instância no “caso triplex” como símbolo dos abusos da Lava Jato. Segundo ele, uma eventual prisão do petista pode comprometer o direito de defesa dos cidadãos – particularmente, dos mais pobres.

“Se condenarem o Lula nesses moldes, qualquer pessoa em território nacional pode ser levada à prisão, apodrecer lá e acabou. Não há quem tire, porque não tem defesa válida, não tem processo válido”, alerta o advogado, em entrevista ao Brasil de Fato. “Se o Lula cair no buraco, vai levar junto o país inteiro”, completa.

A preocupação do jurista foi expressa na segunda página no texto protocolado em Washington: “A vítima da operação Lava Jato não é só o ex-presidente Lula, mas diversos brasileiros anônimos que estão completamente à mercê de um Poder Judiciário mercenário, que objetiva salários e ganhos estratosféricos, muito acima da remuneração mensal mundial para servidores públicos, além de práticas de crime e corrupção”.

Entre os pedidos listados ao final do documento, os advogados sugerem a intimação da ministra Cármen Lúcia, presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF) – ao qual se atribui a função de “zelar pela Constituição”.

Lula na ONU

Cibele Braga e Rubens Francisco não foram os primeiros juristas a acionar órgãos internacionais para denunciar excessos da Lava Jato. Cristiano Zanin e Valeska Zanin Martins, advogados do ex-presidente Lula, protocolaram uma petição no Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra, na Suíça, no dia 27 de julho de 2016.

De acordo com uma nota divulgada pela defesa do petista, o objetivo é fazer com que o comitê se posicione sobre possíveis “arbitrariedades praticadas pelo juiz Sérgio Moro contra Lula, seus familiares, colaboradores e advogados". Em última instância, a petição sugeria que Moro fosse impedido de julgar o ex-presidente, porque teria perdido “de forma irreparável sua imparcialidade”.

As arbitrariedades reunidas até julho do ano passado dizem respeito à condução coercitiva de Lula, na 24ª fase da operação, ao vazamento de materiais sigilosos para a imprensa e à divulgação ilegal de conversas telefônicas. Ao recorrer à ONU, os advogados também ressaltaram o “papel de acusador” assumido por Sérgio Moro, “imputando crime a Lula por 12 vezes, além de antecipar juízo de valor”. Em relação aos demais investigados, os juristas também questionam o uso ilegal das prisões preventivas e a violação do direito de presunção de inocência, previsto na Constituição Federal de 1988.

Toma-lá-dá-cá

O advogado contratado pela defesa de Lula para representá-lo em Genebra é o australiano Geoffrey Robertson, de 71 anos, conhecido por defender na Justiça o ciberativista Julian Assange, fundador do Wikileaks, e o ex-boxeador Mike Tyson. Em maio, ele voltou ao Comitê para atualizar a lista de possíveis abusos cometidos pela operação.

Dois meses depois, o ex-presidente foi condenado em primeira instância por Sérgio Moro, na ação penal conhecida como “caso triplex”. Robertson declarou à imprensa que não ficou surpreso com a decisão, e que espera a confirmação da sentença em segundo grau – “apesar da falta de provas”.

O governo brasileiro foi chamado pela ONU a se defender das acusações reunidas na petição de 2016. O próprio Moro foi quem assinou a defesa, e afirmou que Lula não teria razões para recorrer a cortes internacionais, visto que sequer havia sido julgado em segunda instância.

Questionado sobre o assunto em 30 de agosto, durante um jantar em sua homenagem em São Paulo, o advogado australiano foi taxativo: “A Justiça do Brasil é totalmente parcial. Temos de ir às instâncias internacionais, onde há uma Justiça verdadeira”.

Na prática

Além da Comissão fundada em 1959, a OEA possui uma Corte Interamericana de Direitos Humanos, criada dez anos depois. A ideia do advogado Rubens Francisco, ao fazer um requerimento à CDIH, em Washington, é que aquele pedido chegue à Corte – em San José, na Costa Rica. Como não é um representante do Estado, ele não poderia recorrer diretamente à Corte.

Mesmo que o plano se concretize e o Brasil seja “condenado”, não há garantias de que as decisões judiciais tomadas em âmbito nacional serão revertidas. De qualquer forma, o país seria obrigado a prestar esclarecimentos, perante os demais membros da OEA, sobre as supostas violações de direitos humanos.

Até hoje, o Estado brasileiro foi “réu” em nove casos que tramitaram na Corte da OEA, mas não costuma cumprir as recomendações de organizações internacionais. Em 2010, por exemplo, o STF foi criticado por manter a anistia a crimes políticos cometidos durante a ditadura civil-militar (1964-1985), e mesmo assim decidiu não alterar o texto da Lei 6683, de 1979, conhecida como Lei da Anistia.

No caso da ONU, o mais provável é que os 18 especialistas independentes do Comitê analisem a petição, apreciem se houve ou não desrespeito aos direitos humanos, e recomendem a adoção de políticas públicas para evitar novas violações. O Comitê não é uma instância de julgamento, mas apenas indica se a Justiça dos países-membros age de acordo com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos – aprovado em dezembro de 1966 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, e assinado pelo Brasil em 1992.

O que esperar

O avanço da operação Lava Jato em 2016, em consonância com o jogo parlamentar que levaria ao impeachment de Dilma Rousseff (PT), abriu os olhos de juristas vinculados à OEA para possíveis abusos de poder no Brasil. O posicionamento assumido por eles permite supor que haverá medidas drásticas.

Luis Almagro, secretário-geral da Organização, divulgou uma nota oficial em março de 2016 e se posicionou contra o golpe que estava em curso. Sobre a Lava Jato, Almagro chamou atenção para as arbitrariedades do Poder Judiciário e finalizou: “Nenhum magistrado está acima da lei”.

Em entrevista à Folha de S. Paulo em outubro deste ano, o juiz presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Roberto Caldas, criticou o uso das conduções coercitivas na operação. “Está se queimando etapas, como que para mostrar força e um poder arbitrário. O Estado tem de exercer seu poder com a devida parcimônia”, acrescentou Caldas, ao citar como exemplo as investigações contra o então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier – que cometeu suicídio após ter sua reputação destruída pela operação Ouvidos Moucos, da Polícia Federal (PF).

Um ano e meio antes, em entrevista ao jornal argentino Página 12, Caldas havia criticado a divulgação ilegal de conversas telefônicas do ex-presidente Lula: “Vemos situações típicas de um Estado de exceção”.

Em relação à ONU, não houve nenhum posicionamento explícito do Comitê contra a Lava Jato ou contra as violações de garantias constitucionais no Brasil. No ano passado, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos informou à imprensa que o caso Lula não era considerado urgente e seria debatido em 2017. A petição não entrou na pauta do colegiado até o final desta edição, e a próxima reunião ordinária está marcada para março de 2018.

Retaliação?

Os advogados de Lula alegam que os membros da força-tarefa da Lava Jato reforçaram a perseguição contra o ex-presidente após a petição entregue à ONU – conforme descrito em nota divulgada por eles em agosto de 2016:

“Desde que denunciou os abusos da Lava Jato à corte internacional de Genebra, em 28 de julho, Lula e sua família sofreram retaliações por parte dos operadores da Lava Jato. Sem nenhuma justificativa razoável, a esposa de Lula, Marisa Letícia, e seu filho Fábio Luís foram intimados a depor pela Polícia Federal, que também incluiu outro filho, Luís Claudio, em investigações que não lhe dizem respeito, sem nenhuma base em fatos (...).

Por meio de seus porta-vozes na imprensa, os operadores da Lava Jato ampliaram a campanha de propaganda opressiva contra Lula. Na edição desta semana, a revista Época, do grupo Globo, informa que os procuradores da Força Tarefa estão “irritados” com o que chamam de “tentativas de intimidação”. Na verdade, o recurso de Lula à ONU é um direito de todos os cidadãos dos países que firmaram o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, do qual o Brasil é signatário desde 1992”.

Dois pedidos em um

Rubens Francisco e Cibele Braga, responsáveis pelo requerimento entregue em 11 de setembro em Washington, atuam como advogado de defesa de Jeremias Casemiro – descrito por eles no documento como um “sindicalista, negro e pobre”.

Jeremias Casemiro (Solidariedade) é ex-presidente da Câmara Municipal de Resende-RJ, filiado ao Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas e Mecânicas (Sindmetal), e autor de um pedido de habeas corpus entregue a Moro em junho, para reivindicar a liberdade de Lula e dele próprio.
No pedido enviado à 13ª Vara Federal de Curitiba, Casemiro afirma que ambos são alvos de um processo “que busca sentença condenatória a qualquer preço, negligenciando o Tribunal, tanto do Rio [de Janeiro] como do Paraná, os direitos e garantias do devido processo legal, e mesmo o Pacto de San José da Costa Rica”. Acusado de fraudar licitações em Resende, Casemiro teve um pedido de prisão expedido pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) no ano passado

O caso Jeremias Casemiro também é citado no requerimento protocolado em Washington, em que são denunciadas as supostas violações da Lava Jato. Rubens Francisco e Cibele Braga explicam no documento que o sindicalista é “vítima de abuso de Poder Judiciário brasileiro”, porque o STF se recusa a mais de um ano a julgar o mérito do habeas corpus: “À luz do Pacto de San José, o sistema jurídico brasileiro não cumpre o tratado internacional que prevê nulidade de decreto prisional por autoridade incompetente, sem o devido processo legal, e sem recurso rápido eficaz para a reversão das ilegalidades praticadas”.

Os advogados pretendem que a Corte Internacional de Direitos Humanos julgue o caso Jeremias Casemiro e condene o Brasil pelas violações cometidas a partir da operação Lava Jato.

Esta reportagem faz parte da cobertura especial do Brasil de Fato sobre a Lava Jato. Clique aqui para ter acesso a outros materiais sobre a operação.

Edição: Ednubia Ghisi