Uma audiência pública sobre o projeto Escola Sem Partido (ESP) ocorreu na segunda (6) em Uberlândia, no Triângulo Mineiro. A atividade, organizada pelo Conselho Municipal de Educação, foi realizada na Universidade Federal de Uberlândia. Com anfiteatro lotado, mais de 100 pessoas estiveram presentes no evento, alguns inclusive acompanharam do lado de fora.
O debate ocorre em momento em que projeto de lei municipal inspirado em campanha do Movimento Escola Sem Partido foi proposto pelos vereadores Wilson Pinheiro (PP) e Márcio Nobre (PDT) com apoio de grupos ligados ao proselitismo religioso e liberais, entre eles o Movimento Brasil Livre.
“A chamada Escola Sem Partido, é na verdade, a escola do pensamento único. É a escola da mono-normatividade ideológica ”, afirma Edilson José Graciolli, professor da UFU, que compôs a mesa do evento.
“Somos a favor de uma cultura da paz, mas isso exige Justiça, que por sua vez, exige a luta contra todas as formas de opressão. Porém, o movimento Escola Sem Partido visa eliminar da vida escolar toda e qualquer concepção articulada pelas múltiplas formas de luta por emancipação humana e que se pretenda a superação das desigualdades socioeconômicas”, complementa o professor.
Histórico e contradições do projeto
Analisar o processo histórico de elaboração do projeto seria fundamental para compreender os interesses políticos em jogo com o “Escola Sem Partido”. É o que frisa Mara Nascimento, professora do Instituto de História da UFU, que também participou da mesa do debate. Ela destaca motivações, inclusive econômicas, por parte dos defensores do projeto.
“Se lá em 2004 esse projeto se refere a um combate a uma suposta doutrinação nas escolas feita pela esquerda, em 2014, além disso, vai ser forjada uma ideia de que haveria nas escolas professores que querem destruir a paz nas famílias”, afirma a professora.
O diretor da Superintendência Regional de Ensino, professor Jakes Paulo Félix também crítica esse suposto combate à doutrinação escolar: “Não existe essa coisa de doutrinação. Na escola pública, assim como na privada, o que existe é a pluralidade, uma diversidade de ideias. E o que o projeto do ESP propõe é um pensamento único dentro da escola, sem que haja divergências. Na verdade, é um pensamento imposto”. Ele também avalia que o projeto pode levar a uma criminalização do professor, a partir do momento que ocorre uma tipificação do crime de assédio ideológico: “O professor pode ser multado e preso por isso. Eles ainda alegam que se o aluno for reprovado por conta disso, essa prisão ainda será acrescida em 50% do tempo (...) o programa é nefasto, porque ele não contribui com a dignidade do ser humano, com a diversidade de ideias, de pensamento e de comportamento dentro do ambiente escolar, que é a forma que faz a escola”.
Origens
O movimento Escola sem Partido foi fundado por Miguel Nagib. Desde então o advogado narra que a motivação teria sido o fato de que, em setembro de 2003, sua filha teria chegado em caso afirmando que um professor de História havia feito comparação de Che Guevara com Jesus Cristo.
Em 2014, ganhou força quando se transformou no Projeto de Lei 2974/2014, apresentado na Assembleia Legislativa Estadual do Rio de Janeiro (Alerj) pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro (PSC). No mesmo ano, o irmão do deputado, o vereador Carlos Bolsonaro, apresentou projeto praticamente idêntico na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. O movimento produziu então modelos de projetos de lei, estadual e municipal - disponíveis em seu site.
Projetos de quase igual teor tramitam tanto na Câmara dos Deputados – PL 7180/14, de autoria do deputado Erivelton Santana (PSC-BA) - quanto no Senado, com o Projeto de Lei do Senado (PLS) 193/2016, de autoria do senador Magno Malta (PR-ES).
“Esses mesmos políticos são ligados à chamada bancada da ‘Bíblia, da Bala e do Boi’. São os mesmos que estão tratando de pautas importantes para o destino do país, como, por exemplo, a reforma trabalhista, a reforma do ensino médio e a reforma da previdência”, considera Mara.
Se, por um lado, deve haver respeito à diversidade religiosa e à liberdade de crença, a professora, por outro lado destaca que não se pode interferir no caráter laico do Estado e do ensino. “Não se pode querer que o ambiente público escolar seja pautado pela educação moral religiosa das famílias. Porque o ambiente público é laico e ele precisa promover a liberdade, a igualdade e a democracia”, considera.
“Os adolescentes e crianças não são folhas vazias onde os professores escrevem o que acham. São pessoas que tem opinião. Com a fachada de combater a ideologia, o que está se promovendo na verdade é o constrangimento à livre manifestação dos professores e se cria um ambiente terrível de que os alunos sejam delatores de seus professores”, complementa.
Interesses em jogo para a educação
O professor Edilson José Graciolli também destacou motivações políticas e econômicas que se escondem sob o projeto, entre elas a criminalização da atividade político-partidária. “É muito interessante que o tema de opressão que está no Escola Sem Partido é o que eles denominam de ‘ideologia de gênero’. Mas outras dimensões vão sendo criminalizadas”, destaca.
“O Escola Sem Partido não chega a falar quais partidos seriam alvo de sua atuação, mas é evidente que seus objetivos são a supressão de todo o campo político de esquerda e centro-esquerda e, além disso, da pauta dos direitos humanos”, discorre.
Os professores presentes no debate concordam que ainda que há uma ofensiva contra os direitos humanos se efetivando pelos mesmos agentes políticos que defendem o ESP. “Chega a ser absurdo que cheguem a vincular a Declaração Universal dos Direitos Humanos como coisa de esquerda, uma vez que ela é portadora do que há de civilizatório no projeto liberal”, frisa o professor do Instituto de Ciências Sociais.
“Um dos objetivos do ESP seria de alinhar a casta política que quer ver a educação como mercadoria, eliminar por completo a política como exercício da cidadania. Aí nisso se constroem ideias, tais como a de que ‘politicamente correto’ seria expressão de esquerda ou de que direitos humanos seriam plataforma de esquerda”, situa Mara Nascimento.
“Além disso, há de se considerar que o ESP é, no sentido gramsciniano, um partido político. Uma vez que fornece um movimento de ideias que dá base a uma racionalização”, complementa Edilson.
No que se refere à educação pública, a situação se agravaria com o lobby de grandes empresas ligadas a esses deputados, que estão interessadas em lucrar com o setor. “Desde o golpe, o ensino passou a figurar como uma questão da economia, não é a à toa que em setembro, o presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, concedeu uma entrevista ầ rádio CBN afirmando como os investidores estão satisfeitos com o futuro da economia e cita a reforma do ensino médio entre as medidas satisfatórias ao mercado realizadas pelo governo Temer”, destaca Mara Nascimento.
Outra preocupação seria a precarização da atividade docente com essas medidas. “Grandes empresas do setor educacional que buscam alta lucratividade querem colocar as mãos no orçamento do Fundeb por meio de contratos, através da PPPs, fazendo com que o capital privado entre na educação pública. Com a lei da terceirização e outras medidas da reforma trabalhista, agora essas parcerias também tentam se efetivar nas atividades fim das escolas. Ou seja, essas empresas chegam a intencionar a contratação de professores de forma terceirizada”.
Projeto é inconstitucional e apresenta outras ilegalidades
A professora do Instituto de História da UFU destacou ainda irregularidades legais do projeto referentes à Constituição Federal (CF) e ao Plano Nacional de Educação (PNE). “O projeto apresentado em Uberlândia é praticamente cópia de outros que tramitam em câmaras e assembleias legislativas, e apresenta um texto bastante contraditório. Esse texto promove censura e, portanto, contraria vários artigos da CF e do PNE. Em nome de um combate a suposta doutrinação na escola, eles estão produzindo projetos de lei muito mal formulados, que não se sustentam na letra da lei”, afirma.
Para a professora, entre os artigos da CF que o projeto de lei do Escola Sem Partido infringiria, está o artigo 206, que garante o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas na prática do ensino, além da valorização dos profissionais da educação escolar.
Quanto ao PNE, ao instaurar um clima de perseguição política aos professores nas escolas, o projeto também contraria metas do plano, que tem vigência a partir de 2014. “O PNE tem entre seus pontos, que devem ser cumpridos até 2024, a estratégia 31, na meta 7, que fala da valorização do profissional da educação. Além disso, o plano propõe a superação das desigualdades educacionais com ênfase na promoção da cidadania e dos direitos humanos”, destaca.
“Professores são mal pagos, chegam, inclusive, a ter vencimentos parcelados. Por que não discutir situações como a de Uberlândia, em que estão sendo fechados os laboratórios de informática na rede de ensino municipal? Márcio Nobre e Wilson Pinheiro estão surfando na onda instalada pela extrema-direita e pelo MBL que viu formas de desviar a atenção do que está realmente acontecendo no país, que é a roubalheira das nossas reservas, a reforma trabalhista, a volta de relações de trabalho similares ao escravismo e a Reforma da Previdência. Essas são os nossos verdadeiros problemas, mas essa é a estratégia do grupos apoiadores do ESP”, complementa.
Edição: Joana Tavares