Quer começar uma briga em uma feira estadual, em um show de agricultura, ou em uma reunião da Comissão Europeia? Faça com que fazendeiros, consumidores e políticos discutam engenharia genética e o uso de pesticidas. Todos esses tópicos entrelaçados compreendem um dos debates mais controversos sobre alimentação e agricultura da última década.
Carey Gillam aventura-se diretamente neste vespeiro global em seu novo livro, Whitewash: The Story of a Weed Killer, Cancer e Corruption of Science (ainda sem tradução para o Português), publicado pela Island Press.
Jornalista investigativa há mais de duas décadas, Gillam cobriu o agronegócio para os meios de comunicação, incluindo a Reuters, onde escreveu alguns dos primeiros artigos analisando os perigos potenciais do glifosato. Depois de passar anos na "batida da Monsanto", Gillam deixou a Reuters em 2015 para atuar como diretora de pesquisa no U.S. Know How, um grupo sem fins lucrativos que defende a transparência no sistema alimentar americano.
O portal Civil Eats falou com Gillam sobre sua vida dentro e fora do jornalismo, os agricultores que conheceu ao longo do caminho e os grandes negócios da agricultura. Confira a entrevista.
Civil Eats - O principal personagem no seu livro é o glifosato. Você poderia falar mais sobre como ele é feito, para quê é usado e por que seu livro gravita em torno desse químico relativamente obscuro?
Poucas pessoas em um coquetel querem falar sobre glifosato, certo? Não é um item de casa. Glifosato é o ingrediente ativo naquilo que é familiar para muitas pessoas, que é o herbicida rotulado Roundup da Monsanto. Glifosato é o herbicida mais amplamente usado no mundo, e chegou ao mercado em 1974 como um milagre para combater ervas daninhas, que são muito difíceis para os fazendeiros erradicarem.
O glifosato foi notável porque foi muito eficiente e poderia ser aplicado amplamente a uma variedade de diferentes tipos de ervas daninhas. Foi considerado muito mais seguro do que muitos outros herbicidas, e foi considerado muito mais benigno para o meio ambiente. Recebeu muitos aplausos, muita atenção. Os cientistas da Monsanto que descobriram as propriedades herbicidas ganharam prêmios por isso.
Ele foi adotado bastante amplamente em todo o mundo como um substituto para alguns herbicidas mais perigosos e, claro, as mães e os pais sabem porque as pessoas usam isso em seus gramados e jardins. É usado em campos de golfe, e cidades e municípios usam isso em parques e playgrounds. Realmente se tornou universal no nosso mundo, e eu vejo isso como um bom exemplo para discussões mais amplas sobre o uso de pesticidas.
Você começa e termina Whitewash com a história de Jack McCall. Quem foi ele e por que você achou que era importante começar com ele?
Ao longo de Whitewash, eu tentei contar as histórias de pessoas reais porque é com isso que eu me importo. Acho que é isso que todos nós nos preocupamos. Pessoas como Jack McCall, sua esposa Teri e sua família têm esta bela pequena fazenda em Cambria, Califórnia, e cultivavam diferentes tipos de frutas cítricas, assim como abacates. Jack desenvolveu linfoma não-Hodgkin, um tipo muito agressivo, e teve uma morte particularmente horrível, falecendo no dia seguinte ao Natal de 2015.
Sua história é particularmente comovente para mim porque Jack não queria usar pesticidas em sua fazenda. Ele era um tipo de ecologista hippie, e ele usava o Roundup porque ele havia sido informado e acreditava que era muito, muito seguro. E essa é uma história que ouvimos de muitas pessoas, que elas acreditavam que o Roundup era seguro.
Você escreve muito sobre o que você entende como um esforço da Monsanto para encobrir evidências dos efeitos adversos do glifosato em comunidades rurais e no meio ambiente. Você poderia falar mais sobre isso?
A pesquisa e as revelações em Whitewash realmente são o ponto culminante de 19 anos de trabalho que fiz sobre o glifosato e a Monsanto. Ao longo desses anos aprendi sobre as estratégias de negócios da Monsanto e seus esforços para promover e expandir o uso de seus produtos de glifosato. Ao fazer isso, entrevistei muitos indivíduos e aprendi que a posição da empresa, e a narrativa que apresenta, nem sempre estavam de acordo com os acontecimentos, o que você estava ouvindo de agricultores, cientistas ou outros pesquisadores.
Em cima disso, você também soma os documentos obtidos pelo Freedom of Information Act (FOIA, Lei de Liberdade de Informação) - literalmente milhares de páginas - de diferentes agências reguladoras: US Food and Drug Administration, Environmental Protection Agency e Department of Agriculture.
Você coloca em cima disso os outros documentos que a organização para a qual trabalho, a U.S. Right to Know, obteve de professores de ciências agrícolas e patologistas de plantas em universidades que trabalharam secretamente, nos bastidores, com a Monsanto. Então você coloca em cima disso os documentos que foram recentemente descobertos no processo litigioso pendente contra a Monsanto.
Quando você junta tudo isso, ele pinta uma imagem muito clara dos esforços estratégicos para controlar, manipular e enganar. É indiscutível que a Monsanto tenha feito um grande esforço para enganar os reguladores, os formuladores de políticas e o público por muitos, muitos anos sobre esse produto químico.
O que você encontrou quando revisava os documentos da FOIA que mais chocou você?
Há uma longa lista. Um exemplo é a rede de cientistas que a Monsanto desenvolveu em todo o mundo, como um exército secreto de soldados que pode ser ativado sempre que for preciso convencer os reguladores, revistas científicas ou a imprensa de que a posição da Monsanto é válida e que quaisquer preocupações não o são. Segundo os documentos que encontrei, a Monsanto está atribuindo a esses professores a tarefa de escrever documentos políticos ou de publicar um artigo específico na revista em que a empresa de relações públicas da Monsanto escreveu, que levará o nome do cientista e parecem ser independentes.
Um exemplo muito específico é o do professor Bruce Chassy, da Universidade de Illinois, que, enquanto estava na universidade, recebeu muito dinheiro, ao longo dos anos, para seu programa. Quando ele estava se aposentando, a Monsanto queria que ele fizesse parte de uma organização sem fins lucrativos chamada Academics Review, que aparenta ser independente, e que publica artigos e faz considerações em temas importantes.
A Monsanto, na troca de e-mails, está falando sobre como eles querem fazer isso, e que não querem que ninguém saiba que a Monsanto está por trás disso. E eles fizeram isso uma e outra vez com inúmeras organizações e inúmeros professores que eles podem ativar como cães de ataque para desacreditar cientistas ou jornalistas, ou para avançar falsas narrativas sobre a segurança dos produtos da Monsanto. Para mim, isso é ultrajante e atroz. Parece antiético e enganoso.
Houve Marchas Contra a Monsanto em todo o mundo e uma grande quantidade de esforços para trazer às claras as práticas da empresa. Alguma dessas ações afetou, no fim das contas, a Monsanto?
Acho que não. Os preços das ações da empresa vêm aumentando nos últimos meses. Os acionistas adoram isso, os investidores adoram isso e sim, eles recebem muita negatividade e ganham a ira dos defensores da segurança alimentar e ambientalistas, mas sabem como gerar dinheiro e lucros, e eles têm uma posição tão dominante no mercado agrícola com suas sementes e marca. Isso é o que o mercado recompensa.
Você documenta o que a Monsanto está disposta a fazer para desacreditar e atacar cientistas e jornalistas. Eles vieram atrás de você?
Sim. A Monsanto admite que eles contataram meus editores e fizeram esforços para me tirar da seção de alimentos e agricultura na Reuters. Eles também usaram empresas como BIO e CropLife, da indústria agroquímica, que tentaram bloquear e limitar minha cobertura. Eles fizeram com que organizações sem fins lucrativos, como a Academics Review, escrevessem artigos me atacando. Eles tentaram vilipendiar e desacreditar meu trabalho pelo menos na última década - depois que descobriram que eu não iria papagaiar a propaganda que eles queriam que os repórteres usassem.
Você trabalhou por algumas décadas como jornalista investigativa. Por que você desistiu de uma carreira tão bem-sucedida como repórter?
Eu tive um novo editor [na Reuters], que não estava completamente familiarizado com a redação da seção de alimentos e agricultura. A pressão da Monsanto e da indústria criou muitas tensões e, eventualmente, decidi que era melhor mudar para a U.S. Right to Know, onde eu poderia me concentrar em tempo integral na pesquisa de alimentos e agricultura – um tópico sobre o qual me tornava particularmente apaixonada.
Foi difícil mudar de uma posição de jornalista neutra para uma posição de mais militância?
Eu ainda rejeito o rótulo de “militante” – além de militar pela verdade e transparência, o que, como jornalista, é que você deve fazer. Quando você é jornalista, você procura a verdade, e você compartilha isso com outros. Isso é o que estou tentando fazer agora.
Por exemplo, eu não tomo uma posição ou emito opinião sobre se o glifosato deve ou não ser banido. Essa é uma posição de gerenciamento de risco que deve ser tomada pelos formuladores de políticas públicas e pelos reguladores – esse não é meu trabalho. Meu trabalho é apresentar informação relevante, verdadeira, que foi escondida do público ou que não está facilmente à disposição do público, para que decisões informadas possam ser tomadas. Isso não cai bem para muitas pessoas, e eventualmente talvez eu esteja mais confortável em um papel [de militante], mas nesse momento eu penso que é suficiente dizer a verdade.
Como você acha que a questão está sendo noticiada na mídia convencional?
Penso que há uma falta de reportagens suficientemente aprofundadas sobre os temas importantes em torno da alimentação e da agricultura e da saúde do nosso meio ambiente. Isso se dá por muitas razões: demanda por outras histórias; falta de clareza em questões muito complexas, complicadas e altamente controversas. Há muitas razões pelas quais é difícil para um jornalista em um boletim eletrônico, por exemplo, ou em uma estação de rádio ou em um jornal, explorar profundamente essas coisas...
Existem meios que estão fazendo trabalhos muito bons de investigação, mas são poucos e desconectados. Mas você o mesmo com muitos outros temas realmente importantes hoje.
Você esteve recentemente na França, fazendo uma apresentação sobre o glifosato para o Parlamento. A UE tem sido muito mais dura na regulação do herbicida que os EUA. Qual você acha que é a razão disso?
O que descobri na Europa é que eles têm há muito uma visão mais preventiva para proteger seus alimentos, sua população e seu ambiente do que aqui. Historicamente, não parecem ter tido o tipo de regulação cooptada por corporações que temos aqui nos EUA, embora pareça haver preocupações sobre isso. Eles valorizam sua saúde pública e ambiental, e a qualidade e pureza de seus alimentos, mais do que nós aqui nos Estados Unidos.
Aqui, todos esperamos um selo de borracha da EPA, porque é isso que sempre obtemos da EPA. Essa é outra mensagem, ainda maior: não vejo isso como um problema apenas da Monsanto ou do glifosato. Se acabássemos com a Monsanto ou com o glifosato amanhã, isso não resolve o problema dos pesticidas. Nós nos tornamos tão dependentes de pesticidas como uma solução fácil ou rápida para qualquer coisa que identificamos como um problema. Não é saudável, e não é sustentável a longo prazo.
O que você antecipa que irá acontecer com a EPA (Enviromental Protection Agency, Agência de Proteção Ambiental) sob a direção de Scott Pruitt, que já se mostrou bastante à vontade com as empresas agroquímicas e as outras indústrias que ele regula.
Nós definitivamente não estamos melhorando, e parece ser bastante claro que vamos na direção oposta, onde não importa o que a ciência diz ou quais são as preocupações - se a corporação quiser, a corporação vai ter. Olhe para a Dow Chemical e os chlorpyrifos, pelo amor de Deus. Há uma abundância de evidências dos danos dos Chlorpyrifos para crianças pequenas e seu neuro desenvolvimento, então ele foi marcado para ser banido. E então a Dow Chemical chega com uma doação de US $ 1 milhão para o fundo inaugural do Trump e eis que a EPA decide não proibir chlorpyrifos. Eles nem tentam esconder que estão em conluio.
O que tem te dado esperanças nesses dias?
Eu vejo como um sinal de esperança que tantas pessoas parecem estar prestando atenção a essas questões. Estamos vendo pelo menos um ligeiro golpe de interesse, educação e divulgação e tentativas de despertar políticos e outros para tentar proteger nossas comunidades. Nós estamos vendo isso mais nos níveis locais onde as pessoas estão exortando seus sistemas escolares a parar de pulverizar os herbicidas nos parquinhos, do que no nível nacional. Mas acho que as pessoas estão começando a prestar atenção, então há esperança nisso, talvez?
(*) Esta entrevista foi editada para tamanho e clareza. Confira a entrevista completa aqui.
Edição: Simone Freire