Entrevista

Professor intimado pela USP: “Há triagem ideológica na universidade brasileira”

Marcos Sorrentino responde a sindicância por realizar atividade em parceria com o MST em abril deste ano

|
Sorrentino descreve a discriminação aos movimentos sociais
Sorrentino descreve a discriminação aos movimentos sociais - Reprodução

Em artigo recente, o portal da ADUSP (Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo) expôs o gravíssimo caso das ameaças sofridas pelo professor Marcos Sorrentino. Ele é alvo de sindicância e foi convocado para uma oitiva com a finalidade “de investigar uma atividade acadêmica organizada em conjunto com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)”. A atividade foi realizada em abril desse ano, durante a quarta edição da “Jornada Universitária em Apoio à Reforma Agrária” (JURA). Organizaram o evento o Laboratório de Educação e Política Ambiental (OCA, do qual faz parte o professor Sorrentino), o Núcleo de Apoio à Cultura e Extensão em Educação e Conservação Ambiental (NACE PTECA/ESALQ) e movimentos sociais ligados à Via Campesina.

Segundo conta a matéria, “no dia 18/4, no gramado central do campus, foi organizada uma oficina de lona preta em conjunto com o MST com o objetivo de mostrar como se montam as barracas de assentamentos e promover uma conversa sobre a vida de um militante acampado. Entretanto, no mesmo dia uma notícia falsa foi compartilhada nas redes sociais, espalhando o boato de que o MST estaria promovendo uma invasão do campus. A notícia foi rapidamente desmentida pela direção da ESALQ e pela Prefeitura do Campus”.

Dada a comoção gerada pelo factoide e tendo em vista o intenso momento de polarização e criminalização da política que atravessamos, instalou-se nesse contexto uma Comissão Sindicante, para averiguar os fatos. Sorrentino foi convocado para a oitiva, que trazia dois questionamentos gerais: se havia autorização para utilizar a logomarca da ESALQ no evento; e se algum colegiado havia aprovado a realização das atividades. Sobre os questionamentos, o professor afirma categoricamente trabalhar há 30 anos na ESALQ e sempre haver se utilizado da logomarca da universidade sem qualquer problema; e que, até hoje, jamais precisou de autorização de um órgão colegiado para organizar suas atividades.

O que está em questão, como o próprio professor expõe, é uma espécie de “triagem ideológica”, com as universidades claramente a serviço das elites e corporações. Tanto que se naturaliza e estimula quaisquer eventos empresariais voltados a fomentar o agronegócio — como o ESALQShow, realizado no último mês de outubro –, ao passo em que se criminalizam e dificultam atividades vinculadas a movimentos sociais e de contestação ao estabelecido. A universidade torna-se, assim, uma correia de transmissão dos interesses das classes dominantes, e transforma-se em palco de batalhas e disputas sempre que tensionada a cumprir um papel social, crítico e transformador. Nas palavras de Sorrentino, “a escola serve majoritariamente a essas grandes empresas que trazem recursos a laboratórios, e quando há um conjunto de professores ou estudantes que se comprometem com a agricultura familiar ou com agricultores acampados, vem esta triagem dizendo que não poderíamos usar o gramado para a oficina”.

O blog Plantar o Futuro publica a seguir entrevista exclusiva com o professor Marcos Sorrentino, procurando aprofundar o debate. Além disso, iniciou abaixo-assinado em forma de manifesto para denunciar e impedir que tais situações de retaliação ideológica se multipliquem, firmando o papel da universidade como um espaço de liberdade, emancipação e pesquisa voltada ao benefício da sociedade. Você pode ajudar, divulgando e assinando esse manifesto.

Professor, antes de mais nada, gostaria de saber o que você acha sobre a importância de divulgar e dar visibilidade a episódios como esse.

Certamente é importante divulgar, para que a sociedade brasileira e a universidade amadureçam no diálogo sobre o papel dessa instituição na construção de uma cultura de procedimentos democráticos e nas transformações necessárias para sermos sociedades sustentáveis ou que caminhem em direção à sustentabilidade socioambiental.

Dado que a oficina que gerou a atual sindicância ocorreu em Abril, por que a notícia veio à tona apenas agora? Aconteceu alguma movimentação recente?

A notícia veio à tona agora porque no dia 18/10 fui convidado (ou seria mais correto dizer intimado?) para uma oitiva que faz parte dos procedimentos da sindicância instaurada pela diretoria da Esalq para apurar responsabilidades pela realização de uma Oficina de Construção de Barraco de Lona Preta no gramado do campus. No dia 19/10 estive em reunião da diretoria ampliada da ADUSP e relatei o fato. Na semana seguinte um jornalista da entidade me telefonou pedindo uma entrevista e a publicação começou a circular pelas redes sociais. A oficina ocorreu em abril deste ano, durante a Jornada Universitária pela Reforma Agrária, que realizamos há quatro anos aqui. Nos três primeiros sob a liderança do saudoso Paulo Y. Kageyama e neste ano coordenada por um coletivo de 20 entidades, entre os quais a Oca – Laboratório de Educação e Política Ambiental -, que coordeno.

Essa Jornada é realizada por diversas universidades em todo país. Aqui na ESALQ ocorreu neste ano durante dois dias, com mesas redondas e outras atividades, dentre as quais as que foram realizadas no gramado – um teatro e a mencionada oficina, coordenada pelo MST. Quando de sua realização (a montagem do barraco nem sequer furou o gramado para colocar as estacas/pontaletes, pois foram fixados em uma lata de 50 litros), alguns ex-alunos, segundo me contaram, fotografaram o barraco com a bandeira do MST e denunciaram que a faculdade estava sendo “invadida”. Essa informação equivocada (maldosamente ou não) causou comoção entre todos aqueles e aquelas que, como nós, admiram as belezas e a importância deste patrimônio público centenário para a vida nacional. A própria diretoria da Esalq e a Prefeitura do campus se apressaram a informar a verdade dos fatos, mas apenas o diretor poderia informar o motivo pelo qual resolveu levar adiante uma sindicância para apurar responsabilidades pelo fato.

Qual era sua intenção ao convidar integrantes do MST para uma atividade no campus da USP?

Acredito que esteja claro o porquê do convite. Cooperamos no sentido de bem formar estudantes com compreensão crítica sobre a realidade brasileira. Cooperamos na implantação de assentamentos agroecológicos no Extremo Sul da Bahia. Paulo Kageyama e a equipe de seu laboratório já cooperavam há mais tempo, com diversos projetos de pesquisa no Pontal do Paranapanema. Nós, da Oca, nos últimos cinco anos, desenvolvemos pesquisas focadas no desenvolvimento de um método de Alfabetização Agroecológica Ambientalista e na compreensão de estratégias para o aprendizado da agroecologia por agricultores assentados. Estamos amadurecendo propostas de políticas públicas regionalizadas que contribuam para a transição educadora de municípios que assumam a agroecologia como caminho para a sustentabilidade socioambiental. E o MST, assim como outros movimentos sociais do campo, tem sido importante parceiro nisto.

Para você, houve perseguição ideológica ao abrir essa sindicância? Existe histórico de situações como essa?

Não posso afirmar que houve ou há perseguição ideológica mas posso constatar que há uma triagem ideológica, pois diversos outros eventos que são realizados no gramado central e em outras áreas públicas da Esalq nunca solicitaram permissão para a sua realização. Eu mesmo já realizei aulas ali e acompanhei atividades de extensão e eventos diversos realizados por mim e/ou por outras pessoas.

Há muito tempo você vem desenvolvendo atividades em parceria com movimentos sociais como o MST. Por que dessa vez houve tal repercussão?

Já realizamos aberturas dessas atividades do JURA inclusive com a participação de ex-diretores da ESALQ, mas acredito que neste momento de retrocesso conservador em toda a sociedade brasileira sejam maiores as pressões sobre a diretoria da Instituição, para expurgar grupos e pessoas com compromissos divergentes do hegemônico.

Edição: Plantar o Futuro