Aos vinte e sete dias de outubro, às dezesseis horas recebemos na sede do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (CENARAB), a Senhora Valesca Pereira dos Santos e o senhor Gustavo Pereira dos Santos, ambos moradores da Rua 45, número 278, Bairro Imperador, em São Joaquim de Bicas, em Alto Paraopeba (MG) que, num ato de desespero e medo, nos procurou solicitando ajuda pelos fatos que se seguem:
As pessoas referidas acima são uma família que tem uma propriedade na cidade de Mario Campos, propriedade essa que integram a moradia, um lar social e um terreiro de Umbanda “Casa Espírita Império dos Orixás de Nossa Senhora da Conceição e São Jorge Guerreiro”.
Na última terça-feira, 24 de outubro, cinco homens, liderados por um policial aposentado de nome João Camargo, invadiram a propriedade fortemente armados e empenharam uma sessão de ameaças à vida desses moradores acima qualificados, que estavam na referida propriedade. Além da ameaça com as armas, começaram a quebrar e destruir toda propriedade sob o argumento de que não queriam “macumbeiros” naquela cidade, assim, quebraram as imagens do terreiro e todos os objetos religiosos pertinentes ao culto afro-brasileiro da Umbanda. Relatam, ainda, que essas agressões começaram no dia 24 do corrente mês.
As vítimas conseguiram chamar a polícia que, ao chegar no local e encontrar os agressores, sendo alguns desses policiais, nada fizeram. Olharam o local, averiguaram e, num ato de educação, solicitaram que os agressores se retirassem do local. No entanto, como uma das vítimas que foi ameaçada com um revólver apontado para a sua cabeça passou mal, fizeram a condução dessa até o hospital, oportunidade essa que os agressores acharam para voltar à propriedade e continuarem quebrando.
Na quarta-feira pela amanhã, três dos agressores retornaram e, dessa vez, além de armados belicamente, traziam consigo motosserras e ferramentas de construção destinados a destruir o que não conseguiram no dia interior, começaram a sessão de ameaças e tortura psicológica, daí, sem conseguir aguentar as ofensas e já bastante nervosa com toda a barbárie ali instalada, sentindo-se coagida física moral e psicologicamente a dona da propriedade, a senhora Maria Serafim, em tratamento de saúde, fazendo uso de remédios fortes, arremessou uma pedra e um pedaço de pau para se defender e na tentativa de refuga-los.
Esses três agressores chamaram a polícia militar que veio instantaneamente e, ao invés de proceder a retirada dos agressores que haviam invadido uma propriedade particular, efetuaram procedimentos de revista e busca nas pessoas que ali se encontravam em solidariedade à família agredida, dentre essas a senhora Valesca, filha da dona da casa, grávida de 7 meses. Eles nada fizeram em relação à invasão, à agressão, às ameaças e destruição do patrimônio particular da família.
A polícia ainda os orientou que não buscassem impedir os agressores, pois esses eram considerados perigosos. Os agressores mantinham ameaças e gritavam dizendo que a aquela religião não continuaria ali e que quando terminassem de destruir tudo começariam a construção de uma igreja protestante.
Com a presença da polícia lá, cortaram todos os fios de luz para impedir o acesso à iluminação e arrebentaram todos os canos responsáveis pelo abastecimento e escoamento de água.
A polícia, mais uma vez, educadamente, solicitou aos agressores que evadissem o local e procedeu a condução das vítimas à delegacia. Novamente, os agressores aproveitando o ensejo, retornaram e continuaram os atos de vandalismo quebrando paredes, telhados e cercas.
Com medo, os moradores da propriedade não retornaram para casa, o que foi visto com alegria pelos agressores, como uma excelente oportunidade continuarem quebrando e destruindo a propriedade, o que aconteceu na quinta-feira e sexta-feira.
Ainda hoje o Estado de perseguição e depredação continuam. O secretário de Governo da prefeitura de Mário Campos esteve no Terreiro e nos relatou que a situação lá é gravíssima. Até o presente momento não conseguimos prender nenhum dos agressores que estão sendo "protegidos" pela PM. E há um agravante na situação, a Mãe do Terreiro encontra-se no Programa de Proteção a Testemunha, pois teve seu companheiro assassinado pelo Latifúndio no Vale do Jequitinhonha, e encontra-se aqui pelo programa.
Não podemos correr nenhum risco, nem expô-la. As agressões não param. Estamos hoje iniciando uma campanha de reconstrução do Terreiro, mas o que me preocupa sobremaneira é a segurança das pessoas, já que os racistas intolerantes, resolveram tomar de assalto o imóvel delas, comprado e já quitado por eles, para ali construir uma Igreja Evangélica, já que na cidade deles "macumba não terá mais".
Ouvi da Defensoria Pública de MG, que o pessoal do Terreiro tem que abandonar sua casa, seu espaço religioso, pois correm sério risco permanecendo ali, um espaço construído a ferro e fogo, com muito suor e lágrimas. Abaixo envio um pouco da sensação que sinto nesse momento. Uma reflexão.
Tenho estado bastante triste com as últimas ocorrências envolvendo crimes de racismo religioso em nosso país. Minas Gerais agora se torna alvo desses infelizes e invejosos de nossa felicidade religiosa.
Uberlândia, Ribeirão das Neves, Santa Luzia e agora São Joaquim de Bicas.
Fui visitar o Terreiro de São Joaquim de Bicas com o Secretário de Estado de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e a Sub Secretária de Estado de Promoção da Igualdade Racial, Cleíde Hilda. Primeiro fiquei extasiada com o que aquelas pessoas construíram para representação de seu sagrado, uma pequena África, linda e maravilhosamente ornamentada na simplicidade e na fé.
Todo terreiro me deu a impressão de uma viagem, um retorno ao que de fato sempre imaginei ser meu canto de fé. As paredes, muito poucas são de barro, muita palha trançada, as representações de sagrado toda construída de barro, o piso de terra batida, tudo convivendo harmonicamente com muita cor. Aquele terreiro que tanto incomoda, de fato, é a expressão de minha essência religiosa. Foi construída por meninos, jovens e talentosos artistas que reproduziram nossa essência ancestral, sem nunca terem pisado em África.
Talvez seja esta harmoniosa combinação de fé, arte e genialidade que tanto tenha incomodado, os que expressam infelicidade, ódio, desprezo e desrespeito em forma de fanatismo religioso.
Acompanhei o pessoal até a Defensoria Pública, onde ouvi por mais de 5 horas, seus relatos emocionados da violência sofrida. Como doeu em meu mais profundo ser ouvir das bocas daqueles jovens, a humilhação sofrida. Ouvir relato de ameaças com arma de fogo colocada em suas caras, ameaça de serem cortados por motoserra, de terem seus corpos queimados. De verem seus pertences, seus móveis serem destruídos, sua comida jogada no lixo. E eu cá impotente, contra um Estado omisso, que não é capaz de proteger seus cidadãos em seu mais sagrado direito da liberdade, da fé e da não fé.
O racismo religioso assola nosso país. A "harmoniosa", a "democrática" e "livre" convivência entre os diversos componentes da sociedade brasileira se desmancha, se desfaz na falência do Estado de Direito. A ausência desse Estado tão propalado como garantidor de nossos direitos, faz com que as máscaras caiam, faz com que as pessoas arrogantes, preconceituosas, racistas e intolerantes, não precisem mais se maquiar no discurso da democracia racial. Elas não mais "temem" mostrar suas faces, pelo contrário, se mostram em toda sua nudez de pessoas más, cruéis e hipócritas. Elas sabem que contam com a omissão de um país sem timoneiro (a), com parcialidade da justiça e o silêncio de muitos covardes.
Para onde vamos?
(*) Makota Celinha é coordenadora do Centro nacional de Africanidade e Resistencia Afro-Brasileira – CENARAB, de Belo Horizonte.
Edição: Simone Freire