No caminho que separa os municípios de Medicilândia e Uruará, o asfalto termina de repente, sem nenhuma sinalização, e a poeira pega os motoristas de surpresa. Esta é uma região de rios e igarapés, e são comuns as pontes de ferro e madeira, que suportam entre 20 e 30 toneladas – as maiores atravessam o Igarapé Pacal e o Rio Seiko.
Sobre esta última, cavalga o boiadeiro Manoel Aroeira, encarregado de levar 600 cabeças de gado de Uruará a Xinguara, no Sudeste paraense. São 930 km de viagem, e o tempo de percurso da boiada é estimado em 110 dias.
Aroeira tem o sorriso fácil e a pele cor-da-estrada, protegida por vestes longas e um chapéu de palha. A camisa, também coberta de poeira, permite ver na lapela a logomarca do consórcio Belo Monte. O boiadeiro explica que o irmão dele participou da construção da usina, e logo pede licença para voltar ao trabalho.
São quase 20 dias sem chuva, e a chamada "puaca" é cada vez mais espessa. As casas de madeira da Vila Globo do Mar, no km 98, são todas amarronzadas, com a pintura desgastada e a aparência envelhecida. Algumas estão com as portas abertas, e se vê de longe os móveis e eletrodomésticos sujos de poeira, em tom acastanhado: a Transamazônica é um elemento indissociável da vida.
A aridez diminui conforme se avança em direção ao km 100. Às três da tarde, a poeira baixa e a estrada parece umedecida por gotículas que caem do céu nublado – espaçadas e por pouco tempo. Seria exagero chamar de chuva ou garoa: os moradores da Transamazônica preferem usar o termo “sereno”. Ao lado da estrada, se veem dois ou três cadáveres bovinos, que Aroeira não foi capaz de salvar.
Sons da floresta
No fim da tarde, um pau-de-arara avança pela estrada no sentido contrário, de Uruará a Medicilândia. Na entrada de cada travessão, o motorista reduz a velocidade para que as crianças saltem e encontrem os pais à beira do caminho.
Três crianças descem no km 125, com o uniforme da escola José Bonifácio. Os irmãos Jackson e Maicon estão matriculados no ensino fundamental em Uruará. O primo Everton*, na educação infantil. As mães, em duas motocicletas, vão buscar os filhos de segunda à sexta no acostamento invisível da Transamazônica.
De moto, da estrada até a casa da família, são dez minutos mata adentro, no sentido norte. Quando as crianças voltam, o sol começa a se pôr, e resta uma hora de brincadeira ao ar livre. Elas gostam de correr, jogar futebol, nadar no riacho e procurar ossos de catitu na floresta. Catitu é uma espécie de porco-do-mato, com até 25 kg, que se alimenta de frutas, legumes e insetos.
A família é aficionada por música. Em um fim de semana, o pai e o tio construíram um violão com tocos de madeira talhados – o instrumento é bonito, mas quase não produz som. A velha cachorra da família tem os pelos louros, quase dourados, e se chama Madonna.
Jackson, o filho mais velho, sabe tocar percussão. Mais do que isso, ele monta sua própria bateria – sob olhares curiosos do irmão e dos primos – em menos de um minuto, com apetrechos que encontra atrás da casa dos pais. O resultado visual não é tão impressionante quanto o violão dos adultos, mas faz um barulho danado.
O interesse começou quando ele viu uma bateria em um programa de TV: ficou hipnotizado. Na igreja evangélica que a mãe frequenta, Edson pegou as primeiras dicas, e é fácil perceber que leva jeito. Com o olhar distante, como se mirasse um público imaginário, o garoto tamborila com facilidade a caixa, o bumbo e os pratos improvisados – ele construiu até um pedal, para marcar os compassos com o pé direito.
Os pais do baterista prodígio têm uma pequena plantação de cacau. Ex-funcionários da Fazenda Panorama, a maior da região, eles decidiram romper o contrato de parceria para trabalhar de maneira autônoma. Além de vender as amêndoas para atravessadores de Medicilândia e Uruará, o casal cria porcos, patos e galinhas para subsistência.
O sonho da família é que Jackson e Maicon “vão longe, façam faculdade”. Mesmo assim, os dois meninos ajudam desde cedo a extrair as amêndoas da cabaça do cacau: estão preparados para seguir a profissão dos pais, se for preciso.
O ruído que as crianças ouvem, a cada amanhecer, é o mesmo que acorda o senhor Ervino Gutzeit, dono e fundador da Fazenda Panorama, a 22 km de distância.
A Amazônia está repleta de macacos uivadores, que no Pará são chamados de capelães. É cada vez mais raro vê-los de perto, em áreas residenciais, mas os moradores garantem que não há como passar ileso à gritaria matinal nos travessões.
O capelão é o animal mais barulhento do mundo – estima-se que o uivo de um macho seja ouvido em um raio de até 5 km. Essa potência vocal, que atinge 130 decibéis, se deve ao hioide, osso localizado entre a laringe e a base da língua, que funciona como amplificador. Os seres humanos também possuem hióide, mas o osso dos capelães machos é maior.
Cidadão honorário do Pará, Ervino Gutzeit é capixaba, tem 85 anos e viveu a maior parte da vida à beira da rodovia Transamazônica. Neto de imigrantes alemães e filho de missionários cristãos que atuaram na Ilha do Bananal, a 1.250 km de Uruará, ele foi autuado por fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) por utilizar mão de obra análoga à escravidão em 2005. Dos 43 trabalhadores que viviam acampados na Fazenda Panorama, a 7 km da pista, 30 foram libertados naquela ocasião.
Com o patriarca em idade avançada, quem administra a Fazenda Panorama é o neto Helton Gutzeit, de 24 anos, que estudou na Suíça e fez um Master Of Business Administration (MBA) em São Paulo.
Madeira e progresso
Próximo ao km 140, à esquerda da pista, no sentido Medicilândia-Uruará, a mata fechada indica que aquela é uma terra indígena, livre da pecuária extensiva – ao menos, por enquanto.
Cobiçada por madeireiros e latifundiários da região, o território ocupado pelos Arara tem 274 mil hectares e cerca de 300 moradores. A área é limitada a norte pela Transamazônica e a sul pelo rio Iriri, que tem 2 km de largura e deságua na margem esquerda do Xingu.
Quando um ônibus ou caminhão passa por aqui, no verão, mal se enxerga o verde das árvores à beira da estrada de terra. A poeira sobe de tal forma que as folhas se tingem de marrom, até que venha uma rajada de vento ou uma chuva fina, rara nesta época do ano.
Antes do trevo que dá acesso a Uruará, dois condomínios de alto padrão, em fase de obras, mostram que a renda média daquele município está alguns passos à frente de Medicilândia. Na capital do cacau, não há nada parecido com os loteamentos Parque Ypê e Bairro Planejado Nova Uruará – a julgar pelo asfalto, pelas palmeiras cuidadosamente plantadas nos canteiros e pelos outdoors das construtoras que prometem “qualidade vida” e “realização de sonhos”.
O poder aquisitivo, que aparenta ser alto, na comparação com as cidades vizinhas, não encontra respaldo nos números. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a remuneração média dos trabalhadores formais em Uruará é 1,9 salários mínimos, apenas a 46ª entre os 144 municípios do estado. A explicação é que a maioria atua na informalidade. Para se ter uma ideia, o IBGE indica que apenas 9% da população está ocupada, porque desconsidera os empregados sem vínculo trabalhista.
Uruará significa “ave noturna”, na língua tupi. Ainda que o progresso e a qualidade de vida prometidos nos outdoors não cheguem aos bairros “não planejados”, o centro da cidade é, de fato, mais organizado que o de Medicilândia ou Novo Repartimento. As ruas são amplas e iluminadas, e a maioria das lanchonetes ficam abertas durante a noite, a poucos metros da BR-230.
Os habitantes se reúnem nas praças da região central, ou em volta do coreto, e jogam conversa fora sentados em cadeiras de praia, para aliviar o calor da estação seca. Contribui para essa tarefa uma espécie de caminhão-pipa, que em vez de abastecer as casas, derrama água sobre as ruas não pavimentadas para assentar a puaca e refrescar as madrugadas.
Um encontro fortuito com o vereador Celino Marizeira (PMDB) em uma sorveteria, logo na chegada a Uruará, ajudou a entender a que se deve o desenvolvimento do município: à atividade madeireira. Em poucas palavras, o político explicou que essa é a “grande riqueza” da cidade, que ele descreve como “bem tranquila, bem agradável”.
O município tem 11,6 mil hectares em lavouras de cacau, mas a arrecadação de impostos com a venda de amêndoas é ínfima, a exemplo de Medicilândia. Também na atividade madeireira existe clandestinidade e evasão fiscal – basta ler o noticiário policial para saber que parte do produto sai da cidade sem nota. No entanto, a extração de madeira gera renda de outras formas.
Segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), o mercado ilegal movimenta mais de 100 bilhões de dólares por ano, e representa 30% de toda a madeira comercializada no mundo. No Pará, a proporção é ainda maior. Segundo a ONG Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), que investigou a atividade entre 2011 e 2012, 78% da madeira que sai do estado é ilegal. Os principais destinos são Estados Unidos, Alemanha, China, Bélgica e Reino Unido.
Uma tora de 15 metros, com pouco mais de 6.250 m³ de madeira, vale cerca de R$ 10 mil no mercado clandestino. Como não incidem impostos sobre a venda ilegal, os cortadores, transportadores, e todos os atores da cadeia produtiva são recompensados, devido ao alto risco da atividade. Os salários acima da média, ainda que não constem na carteira de trabalho nem nos dados do IBGE, ajudam a movimentar o comércio em Uruará e mantêm a economia em alta.
Mercado negro
Funcionam em Uruará cerca de 20 madeireiras, que financiaram a campanha de quase todos os vereadores. Os números superam os outros três municípios que sobrevivem dessa atividade na Transamazônica, somados – Pacajá, Anapu e Placas.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) estima que, na década de 1970, com o início da construção da BR-230, havia 100 mil trabalhadores escravizados por ano em fazendas na Amazônia. Os números despencaram conforme o governo militar retirou os investimentos na colonização da região, e voltaram a subir após a redemocratização do país – não há registros oficiais que comprovem essa hipótese, ano a ano.
Entre 1964 e 1988, foram identificados 55 empresas ou fazendas que utilizavam mão de obra escrava no Pará.
Nos governos Lula e Dilma Rousseff (PT), a população aprendeu a conviver com as fiscalizações trabalhistas e ambientais, cada vez mais frequentes em Uruará. Em maio de 2008, uma ação conjunta do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Polícia Federal (PF) aplicou seis autos de infração, que totalizaram R$ 600 mil em multas, e embargou quatro serrarias no município. Três operavam sem licença, e uma armazenava madeira clandestina. Durante as visitas, houve tentativas de homicídio e uma viatura foi incendiada
A série de fiscalizações, que fazia parte da segunda etapa da operação “Grilo”, apreendeu 217 m³ em toras e 147 m³ de madeira serrada, a maior parte da espécie Jatobá. Esta árvore, cujo nome científico é Hymenaea courbaril, pode chegar a 80 metros de altura e está ameaçada de extinção. A espécie é considerada sagrada por povos indígenas da Amazônia, que costumam servir os frutos antes de rituais de meditação, para estimular o equilíbrio mental e a concentração.
Em junho de 2015, o Greenpeace divulgou imagens aéreas do município e flagrou novas irregularidades. A Fazenda Agropecuária Santa Efigênia teria fraudado inventários florestais para derrubar árvores na região – a madeira teria sido comercializada com 16 serrarias de Uruará, sem registro de origem.
Em outubro do ano passado, a Polícia Civil deflagrou a operação “Virtualis”, que prendeu seis pessoas em Uruará. As fraudes também envolviam servidores da Secretaria de Estado da Fazenda do Pará (Sefa) e madeireiros de outros quatro municípios da Transamazônica: Altamira, Pacajá, Placas e Rurópolis. O esquema consistia na emissão de notas fiscais de transporte e guias florestais “frias” – os fiscais da Sefa eram acusados de forjar as averiguações.
Um mês depois, a operação “Onda Verde” fechou três serrarias em Placas, a 60 km da região central de Uruará pela Transamazônica. Duas delas recebiam madeira cortada dentro da TI Cachoeira Seca, no limite entre os dois municípios. Um dos empresários presos escondia 200 toras de madeira no meio da mata, para enganar os fiscais do Ibama. O dano ambiental foi estimado em R$ 897 milhões.
A TI Cachoeira Seca tem cerca de 700 mil hectares, abriga indígenas da etnia Arara e é considerada “a mais desmatada do Brasil”.
A madeira clandestina que sai do Pará viaja até o litoral cearense, próximo a Fortaleza, e de lá costuma ser encaminhada para os países importadores. É possível saber o trajeto do produto através de rastreamentos via satélite e de apreensões que acontecem na própria rodovia.
Em maio deste ano, por exemplo, uma carreta que seguia de Uruará a Fortaleza foi apreendida em Buriti dos Lopes, região norte do Piauí. O veículo carregava 30 m² de madeira serrada sem a devida documentação – o que configura crime ambiental, segundo a Lei 9.605/98.
Mudança de área
David Amorim tem 72 anos e trabalha como motorista há quase meio século. Natural de Tijucas, a 55 km de Florianópolis, ele mudou-se para a região de Uruará no início dos anos 2000, para transportar madeira serrada. A empresa pagava em dia, mas o salário não compensava o risco de levar carga ilegal na caçamba.
“Era tudo frio! Às vezes tinha nota, mas já era a ‘nota da nota’”, lembra.
Quatro anos depois, o catarinense decidiu mudar de vida: comprou um lote por R$ 8 mil e construiu uma casa no travessão do km 95 norte, próximo a Medicilândia. “Tem gente que diz que eu paguei caro. Na época, aqui na Transamazônica, se trocava esses terreninhos de 40 m² por um relógio, ou uma espingarda”, brinca.
David Amorim vive com a esposa e o filho de cinco anos a 30 km do centro de Medicilândia. Há dois anos, trabalha como motorista do pau-de-arara que leva as crianças à escola Magalhães Barata, e conhece toda a vizinhança do travessão: “Não tem preço criar o menino no meio dos tamanduás, dos macaquinhos. Tem alguns problemas, sim. Às vezes o caminhãozinho atola ou capota na estrada, mas eu digo que isso aqui é um paraíso. E é bem menos perigoso levar as crianças para a escola do que transportar madeira fria”.
Desconfiança e violência
Além dos crimes ambientais, a extração ilegal de madeira está relacionada à superexploração do trabalho na Transamazônica, segundo informações da ONG Repórter Brasil. Em novembro de 2016, o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o MTE se reuniram em Altamira com empresários da região para cobrar a redução dos acidentes de trabalho e da informalidade no setor.
O Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Madeireira em Uruará trabalha com uma média de 100 acidentes por ano. As serrarias têm em média 20 funcionários, que costumam ser pagos “por diária”: menos da metade têm carteira assinada.
As pesquisadoras da Universidade Federal do Pará (UFPA), Luciana Sá Fernandes e Rosa Elizabeth Marin, analisam que o isolamento geográfico contribui para a perpetuação dos casos de trabalho escravo. No artigo Trabalho Escravo nas Fazendas do Estado do Pará, elas mencionam a fiscalização ocorrida em 2015 em uma fazenda em Uruará, a 150 km de qualquer área urbana. A autuação só foi possível porque um dos trabalhadores fugiu e relatou a situação à Promotoria de Justiça da Comarca de Uruará, que solicitou um mandado de busca e apreensão.
A atitude daquele trabalhador, Sebastião Almeida de Souza, é cada vez mais rara. Em geral, os escravizados são migrantes nordestinos, como ele, e têm dificuldade de se locomover na região, fora do local de trabalho. Na Fazenda Uruará, denunciada por Sebastião, havia dezenas de empregados sem registro, com idade inferior a 16 anos, sem salários ou em condições insalubres.
O dono da fazenda, identificado como Vicente Nicolodi, natural do Rio Grande do Sul, desmatava áreas de preservação ambiental para pastagem. A exemplo do que ocorre nas fazendas de cacau, eis a “norma” da Transamazônica: fazendeiro sulista, empregado nordestino.
Desmatamento. Tráfico de madeira. Trabalho análogo à escravidão. As atividades ilícitas que dominam a região oeste do Pará propiciam um ambiente de violência e desconfiança no entorno da BR-230. Em Uruará, é difícil transitar pela cidade, frequentar locais públicos e conversar com as pessoas sem ser inquirido sobre suas reais intenções.
Qualquer forasteiro pode ser um ambientalista, fiscal do MPT, ou outra dessas “figuras perigosas”, à paisana. Ninguém passa despercebido.
Nossa viagem pelo município chamou atenção a tal ponto que virou assunto em grupos de conversa no Whatsapp. Até o Comando Militar de Medicilândia foi acionado por essa rede de fofocas, atenta a qualquer movimento estranho, que possa ameaçar a segurança coletiva. Segundo a diretora da escola José Bonifácio, a população carrega até hoje o trauma do “caso Francisco” -- uma quadrilha que percorria a Transamazônica nos anos 1990, sequestrando crianças e vendendo os órgãos no mercado negro.
Crimes sem solução não são raros por aqui. Nos últimos dois anos, a morte de dois madeireiros deixou a cidade de cabelos em pé – um motivo a mais para desconfiar de qualquer um. Em 2015, Luciano Stracke desapareceu no Bairro Vila Brasil, onde morava com a família. O corpo dele foi encontrado no Rio Uruará em estado de decomposição, 15 dias depois. Em março deste ano, Jan Clésio Ferreira de Aguiar foi assassinado a tiros no Bairro Progresso I. A polícia acredita na hipótese de “acerto de contas”.
Para inglês ver
Para além de Uruará, no sentido leste-oeste, outros quatro municípios são cortados pela BR-230, até o limite com o estado do Amazonas: Placas, Rurópolis, Itaituba e Jacareacanga.
Os dois primeiros estão entre os dez maiores produtores de cacau do Pará. O perfil da cadeia produtiva é semelhante ao que se verificou em Medicilândia, e a remuneração média dos cidadãos em empregos formais é 2,1 salários mínimos. O IBGE indica que, em Placas, apenas 4,1% da população está ocupada, o que indica alto nível de informalidade.
De Medicilândia a Placas, são 170 km, e mais 90 km até Rurópolis. A rodovia, estreita e não pavimentada, tem como atrativos as gigantes castanheiras e a típica poeira do verão amazônico.
A população de Itaituba é maior que a dos três municípios vizinhos somados: 98 mil. O distrito de Campo Verde, a 30 km de distância, é conhecido pelo trânsito de caminhões no entroncamento da Transamazônica com a BR-163. Por esta rodovia, os grãos que saem do Mato Grosso são levados ao porto de Santarém.
O asfalto volta a fazer parte da paisagem nas imediações de Itaituba, com uma breve interrupção no rio Tapajós. A exemplo do que ocorre em Belo Monte, a travessia é feita de balsa.
O rio faz parte da dinâmica da cidade. Com 200 milhões de hectares usados para mineração, a bacia do Tapajós abrange, além de Itaituba, os municípios de Trairão, Jacareacanga, Rurópolis, Belterra, Aveiro, Santarém e Novo Progresso. Cerca de 10% da área explorada pelo garimpo está dentro de Unidades de Conservação Federais. Por exemplo, as Florestas Nacionais Itaituba I e II, e os Parques Nacionais Jamanxin, Rio Novo e Amazônia.
Não é fácil frear o desmatamento nas Unidades de Conservação. Em maio de 2016, o sargento da Polícia Militar (PM) João Luiz de Maria Pereira foi assassinado em uma emboscada, após desmontar um acampamento ilegal no Parque Nacional Jamanxin. A equipe em que ele atuava recebeu dezenas de disparos. João Luiz foi atingido no pescoço e morreu 40 minutos depois, a 60 km da área urbana de Novo Progresso.
Garimpeiros e madeireiros trabalham em parceria. O acampamento desmontado pela equipe da PM era usado para extração de madeira, mas também guardava máquinas e equipamentos usados para mineração.
O ouro é o metal mais explorado na região, e Itaituba detém cerca de 80% dos títulos minerários para a extração no Pará – o que representa mais da metade da economia da cidade.
São dois mil garimpos no entorno do Tapajós, quase todos irregulares. Nos últimos 60 anos, foram extraídas 800 toneladas de ouro da bacia. Hoje, atuam 50 mil garimpeiros, e a maior parte deles extrai ouro de forma manual.
A empresa britânica Serabi Gold é a principal companhia exploradora de ouro e cassiterita em Itaituba. Em 2015, foi a 8ª maior produtora de ouro em solo brasileiro.
Em junho deste ano, o vereador Peninha (PMDB) fez um discurso na Câmara Municipal e demonstrou preocupação com a falta de controle dos minérios que saem de Itaituba por via aérea. Segundo o parlamentar, a cidade não desfruta das riquezas do ouro, e quem se aproveita são os estrangeiros. “Nem os aviões usados pela Serabi são de empresas itaitubenses. As aeronaves vêm do Mato Grosso, pegam o ouro no garimpo e levam, e nós não sabemos nem a quantidade de ouro que sai”.
Falta de pavimentação e saneamento básico. Baixa escolarização. Mineração em áreas de proteção ambiental. Jacareacanga, último município da Transamazônica paraense, é um cartão de visitas para o próximo estado que a rodovia atravessa: Amazonas. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é 0,505 – considerado baixo, inferior ao de países como Quênia e Paquistão --, e os dilemas socioambientais da cidade são uma síntese de tudo que se viu à margem da BR-230.
A taxa de escolarização de jovens e adolescentes entre 6 e 14 anos é a 5466ª do Brasil, em um ranking de 5570 municípios. Cerca de 2% dos domicílios têm esgotamento sanitário adequado, segundo o IBGE.
Emancipado de Itaituba desde 1991, Jacareacanga tem 40 mil habitantes, dos quais dez mil são indígenas. Os conflitos étnicos são cada vez mais frequentes, e não estão desvinculados da disputa pelos recursos minerais da bacia do Tapajós.
Em junho de 2012, um índio da etnia Munduruku foi morto a facadas e pauladas. Segundo a polícia, foi um latrocínio, e os assassinos levaram consigo pepitas de ouro que estavam com a vítima. Os Munduruku não deixaram barato e atearam fogo na moto dos suspeitos, transferidos à delegacia de Itaituba.
No ano seguinte, lideranças indígenas voltaram a protestar, desta vez contra a construção de barragens no rio Teles Pires. Sobre os ossos de seus antepassados, será inaugurada em 2018 a Usina Hidrelétrica São Manoel. E não adianta ocupar o canteiro de obras: o país precisa dos 700 MegaWatts – como outrora precisou de uma estrada que ligasse o sertão à Amazônia.
Embora o Brasil seja uma nação pluriétnica, por previsão constitucional, outra queixa dos Munduruku em Jacareacanga é a dificuldade para registrar bebês com nomes tradicionais, conforme a língua e a grafia de cada povo. O Ministério Público Federal (MPF) advertiu o cartório da região e acrescentou que o registro civil com nomes tradicionais tem o respaldo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Talvez seja esta a mais simbólica das reivindicações. Produtivo ou especulativo, o capital expropriou-lhes as terras, os recursos, a memória, os costumes, o idioma, tudo. Resta-lhes um nome, como tábua de salvação.
Veias escancaradas
A rodovia segue até o município de Lábrea, entre os rios Purus e Madeira. São mais 827 km de BR-230, para além do Pará, e cada um deles corrobora o fracasso do projeto de Médici para desenvolver a região e impedir a entrega de recursos naturais.
A pobreza, a escravidão e a precariedade dos serviços à margem da Transamazônica contrastam com uma riqueza cada vez menos visível a olho nu. Milhões de hectares de floresta foram destruídos em nome da pecuária, da energia elétrica, do transporte rodoviário, das monoculturas ou da mineração. Os metais estão debaixo da terra, prontos para brilhar no mercado estrangeiro. Com eles, sob o solo amazônico, jazem os cadáveres de quem um dia se opôs a esse modelo predatório, e morreu condenado ao anonimato.
Subsiste como patrimônio desta região de veias abertas, a trajetória honrada dos migrantes que constroem suas vidas em função da rodovia – ou apesar dela. Aos olhos do agronegócio, das multinacionais e do próprio Estado, que não cumpre suas obrigações, Jonas, Maicon, Manoel, Isaílde, Junior, Tonico, David, Maria de Lourdes e Vilimar são apenas mão de obra barata. Cabe a eles mudar o rumo da Transamazônica: não se pode esperar nada de quem, há 45 anos, enriquece às custas da superexploração do homem e da floresta.
Acesse o especial completo sobre os 45 anos da inauguração da Rodovia Transamazônica.
*As pessoas com idade inferior a 18 anos são apresentadas neste relato com nome fictício e a imagem borrada.
ERRATA: A primeira versão desta reportagem citava a mineradora sul-africana AngloGold Ashanti entre as empresas que possuem projetos para exploração de ouro e cobre em Unidades de Conservação na bacia do rio Tapajós. O texto foi alterado no dia 28 de novembro de 2017, às 17h47, após nota de esclarecimento enviada pela companhia: "AngloGold Ashanti gostaria de esclarecer que (...) não faz parte do planejamento da empresa realizar investimento para exploração de ouro na bacia do Rio Tapajós, no estado do Pará".
Edição: Simone Freire