Vesti minha camisa e atravessei a cidade até chegar no pomposo bairro da Vila Olímpia em São Paulo. A missão era acompanhar o 3º Congresso do MBL, no ainda mais pomposo World Trade Center. Mesmo após ter assistido a um vídeo do Salsicha convidando a todos, até mesmo os intervencionistas militares, eu já imaginava que não daria para levar o convite ao pé da letra.
A aversão que os líderes do movimento têm aos jornalistas é conhecida. Apesar de não haver nenhuma restrição à entrada da imprensa na página de informações sobre o congresso, um jornalista foi expulso e outra impedida de entrar. Uma jornalista da Folha foi barrada porque, segundo um dos líderes, “o povo ficou chateado” com uma matéria escrita por ela que “não teria o enfoque certeiro”.
Mesmo tendo escrito diversas colunas sobre o MBL sem o tal “enfoque certeiro”, paguei minha inscrição e acompanhei pacientemente os dois dias de evento.
O auditório, com capacidade para 600 pessoas, estava praticamente lotado. Havia gente de todas as idades, de várias cidades do país e classes sociais. Engana-se quem ainda pensa que o grupo ainda é apenas um convescote de jovens brancos de direita de São Paulo. O MBL furou a bolha e hoje dialoga com diversos setores da sociedade.
O painel de abertura foi composto pelas principais lideranças do movimento. Muito empolgados com o sucesso na última eleição — emplacaram 1 prefeito e 7 vereadores — eles anunciaram que a principal meta para 2018 é eleger uma grande bancada de deputados.
Arthur do Val, mais conhecido como Mamãe Falei, contou que, a despeito da divergência na área econômica, o MBL tem muitos pontos em comum com Jair Bolsonaro:
“Concordamos muito com o Bolsonaro em diversas coisas: revogação do estatuto do desarmamento, redução da maioridade penal… Concordamos em diversas pautas. Inclusive quando ele falou mal da CLT, eu quase soltei fogos na minha casa. Quando ele fala em criar leis antiterroristas que atinjam o MST, eu acho que é um ato de extrema coragem. Eu acho uma palhaçada quando começam a chamá-lo de racista e homofóbico.”
O segundo painel, “O Brasil é realmente um país cristão?”, com os filósofos Pondé e Francisco Razzo, destoou um pouco do maniqueísmo do bem (direita) contra o mal (esquerda) que permeou todo o evento. Razzo fez críticas ao projeto Escola Sem Partido, uma bandeira cara ao MBL. Pondé também fez críticas a algumas ações recentes da direita na “guerrilha cultural”, numa clara alusão ao caso do Queermuseu e outras histerias encampadas pelo movimento.
No painel que analisou os impactos da reforma trabalhista de Temer, as principais estrelas foram o relator da reforma trabalhista Rogério Marinho (PSDB) e o dono da Riachuelo, Flávio Rocha — empresários que enfrentam sérios problemas trabalhistas na justiça. O tucano está sendo investigado no STF pelo envolvimento em uma empresa terceirizada que coagia funcionários demitidos a renunciar às verbas rescisórias e a devolver a multa do FGTS. Já Flávio Rocha viu sua empresa ser condenada a pagar indenizações milionárias por infrações identificadas em oficinas terceirizadas no sertão, onde costureiras faziam exaustivas jornadas de trabalho e recebiam menos que um salário mínimo.
O ponto de vista do trabalhador foi convenientemente ignorado neste painel. Até porque o empresário Renan dos Santos, fundador e líder do MBL, tem pouco mais de 30 anos e também já é réu em pelo menos 45 processos trabalhistas. Ele também fez questão de valorizar atuação das bancadas evangélicas e ruralistas em defesa das pautas do movimento. A primeira teria ajudado no Escola sem Partido, enquanto a segunda teria “segurado a onda na questão da propriedade privada”.
Pastor Marco Feliciano e Ronaldo Caiado estavam confirmados na programação do congresso, mas não foram, para a tristeza da juventude reacionária.
Os prefeitos Paulo Serra de Santo André, Doria de São Paulo e Marchezan de Porto Alegre, três tucanos queridinhos do MBL, formaram o painel “Gestão Inovadora nas Cidades”, uma mesa 100% tucana que se resumiu a fazer propaganda das três gestões. Outro tucano, o ex-ministro das Cidades Bruno Araújo – suspeito por lavagem de dinheiro, corrupção passiva e ativa na Lava Jato – apareceu apenas como coadjuvante.
O ponto alto foi a apresentação de Doria. Ele quebrou o protocolo, desceu do palco, desfilou entre as fileiras do auditório, olhou nos olhos da platéia. Em um discurso emocionado, aos berros, com direito à girada de bandeira do Brasil, estilo Janaína Paschoal, o prefeito falou muito mais como candidato à presidência da República do que como prefeito de São Paulo.
O segundo dia foi mais morno e há pouco o que se destacar. A não ser por uma fala aplaudidíssima do senador José Medeiros (Pode-MT), que apontou William Waack e José Mayer como vítimas do “patrulhamento” pelas “mesmas pessoas que vão ao Senado defender que uma criança de 6 anos pode ir numa exposição e apalpar um homem nu.”
A pregação dos valores morais conservadores e do ideário liberal econômico dominou os dois dias de congresso. A luta contra a corrupção, que sempre foi a principal bandeira durante o governo Dilma, definitivamente não faz mais parte do repertório do grupo — talvez para não constranger alguns dos convidados investigados. O MBL não é mais aquele que saiu às ruas em 2015 e 2016 e que se dizia independente. Hoje, a sua principal preocupação é buscar protagonismo dentro do jogo político partidário. O grupo atua com o pragmatismo de um partido tradicional.
O Congresso foi um sucesso do ponto de vista dos seus idealizadores. Tudo era muito bonito e bem organizado (e caro). Conseguiram reunir importantes políticos e empresários para falar para uma plateia numerosa e entusiasmada. É uma pena que a imprensa não tenha sido bem-vinda. O movimento se chama Brasil Livre, mas não é tão Brasil nem tão livre assim. Os jovens liberais que atacam exposições de arte, invadem reuniões fechadas de partidos de esquerda e atacam com agressividade quem pensa diferente deles, não parecem ser tão adeptos da liberdade que não seja a do mercado.
Por que o evento de um movimento social, aberto a todos e não apenas aos filiados, faz tanta questão em evitar a cobertura da imprensa? Nós gostaríamos de perguntar sobre inúmeras sombras que rondam o MBL que, graças à liberdade de imprensa, foram levantadas: a falta de transparência nas suas finanças, o caixa 2 de Holiday, a ligação oculta com o Jornalivre, a ligação com a Atlas Network, a relação financeira com partidos políticos – “é tudo fake news”, dirão eles sem precisar explicar tantos esqueletos no armário.
O máximo que consegui foi perguntar para o Doria quando é que ele vai parar de viajar e assumir a prefeitura. Ele não respondeu, mas me fuzilou com os olhos, o que foi suficiente para me fazer voltar satisfeito para casa.
Edição: The Intercept Brasil