Por Júlia Dolce | Brasil de Fato | Marabá (PA), 24 de novembro de 2017
Dezenas de crianças levantam de suas cadeiras vermelhas, posicionadas debaixo de uma grande cabana de palha, e com punhos em riste entoam: “Quando o latifúndio quer guerra, nós queremos terra”. Estes são os “sem-terrinha” do acampamento Hugo Chávez, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que ocupa dois alqueires dos 260 da Fazenda Santa Tereza, em Marabá, Sudeste do Pará.
Estudantes da escola municipal Luís Carlos Miranda Gomes, também estruturada em cabanas de palha dentro do acampamento, as crianças apresentaram músicas e discursos para representantes de uma Missão Ecumênica que visitava o local.
Um menino forte, de apenas 11 anos, conta, com orgulho, que sabe falar em espanhol, sua matéria favorita do currículo do quinto ano. Ele diz que também gosta das aulas de artes e história. Nas paredes, desenhos em memória ao Massacre de Eldorado dos Carajás – que vitimou 21 militantes do MST a alguns quilômetros dali no ano de 1996 – exemplificam a distinção em relação ao currículo tradicional do ensino brasileiro.
A importância da escola no acampamento foi um dos argumentos utilizados por advogados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) para conseguir a suspensão ou o adiamento do despejo das 300 famílias da ocupação. Em uma audiência realizada no último dia 6 de novembro, os defensores que representam o acampamento Hugo Chávez conseguiram dilatar o prazo para que o despejo aconteça, e agora está marcado para o dia 13 de dezembro.
Apesar do grande impacto provocado pela ação, com a nova data, as crianças, os jovens e os adultos que frequentam a escola, pelo menos, irão completar o ano letivo. Assim como o protesto que reuniu mais de 150 crianças em frente ao fórum onde ocorreu a audiência, os sem-terra exigem o direito de permanecer no acampamento.
Esta não é a única área ameaçada na região. Por pressão dos proprietários da Fazenda Santa Tereza e de outros latifundiários, liminares de reintegração de posse vêm sendo anunciadas ao longo deste semestre pela Vara Agrária de Marabá.
A Fazenda Santa Tereza é propriedade do latifundiário Rafael Saldanha de Camargo, envolvido em uma série de escândalos, como o assassinato de duas lideranças do MST em 1998 e a descoberta de 15 trabalhadores em situação análoga à escravidão em uma de suas fazendas, em São Félix do Xingu (PA), em 2003.
Tensão
Uma série de conflitos marca o acampamento Hugo Chávez desde o seu início, em 2014. De acordo com Andréia Silvério, advogada da CPT e uma das responsáveis pelo caso, a ocupação é, “sem dúvidas, um dos conflitos mais emblemáticos da região, justamente pelo histórico de violência adotada pelo proprietário”.
Para Hélida, que tem apenas 12 anos e é coordenadora dos sem-terrinha da ocupação, a organização política dos acampados, refletida na mobilização das crianças, é necessária. A afirmação vem de um contexto de ataques sofridos pelos acampados, alguns dos quais ela já presenciou.
"Os pistoleiros soltam bomba de lá para cá. Nos primeiros dias deu medo, a gente pensou que eles iam entrar aqui, estremeceu o chão. Botaram fogo também, queimaram plantação, queimaram roça. Eu só sei que ninguém lucrou com as roças que foram queimadas", contou.
De acordo com Poliane Barbosa Soares, educadora da escola do acampamento, o caso mais recente de violência contra acampados aconteceu em julho deste ano. “Os pistoleiros passaram atirando em frente ao acampamento, durante a noite inteira, e no dia seguinte atearam fogo ao redor do acampamento, montando várias barricadas para impedir que as famílias saíssem. Estamos em constante violência ao longo dos três anos. Então, as crianças têm passado por esses momentos. É muito comum os acampados serem abordadas na estrada, revistados e amedrontados”, relatou.
Poliane denuncia ainda a participação de representantes da família Saldanha no Sindicato de Produtores Rurais da região (Siproduz), que, segundo a professora, tem um papel importante no planejamento de ataques contra os camponeses.
“O Siproduz é um consórcio de latifundiários estabelecido aqui na região há muito tempo, e o principal objetivo dele é justamente a proteção das áreas que estão sendo ocupadas pelos trabalhadores. Além disso, eles se reúnem para definir quem são as lideranças que serão assassinadas na região. Inclusive, em 1998, o assassinato dos militantes do MST foi encomendado pelo Siproduz. Além disso eles também financiam os ataques das áreas ocupadas com munição e contribuem com a contratação dos pistoleiros”, afirmou.
A reportagem do Brasil de Fato tentou contato com a direção do Siproduz por meio de e-mails e telefonemas, mas até o momento da publicação desta matéria não obteve retorno e nem resposta do sindicato em relação às denúncias.
De acordo com o acampado do Hugo Chávez que preferiu se identificar apenas como Marx, os ataques também têm prejudicado financeiramente o acampamento. “Hoje a gente vive em uma condição em que ninguém quer dar serviço para a gente trabalhar, porque o dono da fazenda pede [para que não se dê]. Vamos entrar no inverno, a cesta básica foi cortada, não tem serviço. A gente sobrevive da terra: planta macaxeira, mandioca, milho, feijão. Ano passado tinha muito companheiro com plantações, mas eles [jagunços a mando de fazendeiros] atearam fogo. O propósito era de não só prejudicar as roças, como nos queimar vivos no acampamento, porque algumas casas pegaram fogo. Então, aqui o poder é que impera, o latifúndio está 'se achando'”, disse.
As famílias do movimento destacam que as ameaças de despejos e a violência contra o acampamento aumentaram consideravelmente no governo de Michel Temer (PMDB), como confirmam as estatísticas da CPT, que mostram um aumento de 53% nos conflitos agrários em relação ao ano passado. Segundo Poliane, essa mudança está relacionada aos interesses do governo com a bancada ruralista.
“A gente sabe que o governo anterior tinha suas dificuldades, é inegável. Mas a gente tem hoje um governo golpista instalado no Brasil, que, além dos retrocessos que a classe trabalhadora tem sofrido, tem legitimado a violência no campo, a grilagem de terra, tem atendido à risca a pauta da bancada ruralista”, destacou.
É o que também expôs o acampado Celio Santos, enquanto mostrava para a reportagem as áreas que foram queimadas pelos incêndios criminosos. “Por incrível que pareça, bem no princípio do impeachment começou a arrogância do latifúndio aqui na nossa região. Tem tudo a ver, o mundo funciona através da política, ela que movimenta o Brasil. Mas eles tinham que ter a consciência de respeitar as leis e não esquecer do povo, porque nós aqui não somos bicho, não. Somos pessoas, e realmente queremos alguma coisa na vida”, desabafou.
O advogado que representa a fazenda Santa Tereza foi contactado, mas não respondeu às perguntas do Brasil de Fato.
Confira o especial "Violência no Pará: a parte que te cabe deste latifúndio" completo.