Fruto de uma crise induzida, o problema da migração venezuelana, ao que parece, não terá fim tão cedo. O sufocamento econômico sofrido pelo país advém – para além das dificuldades produtivas internas – de fortes sanções econômicas e comerciais norte-americanas e europeias, ocasionando grandes dificuldades ao país e atingindo também o estado de Roraima.
O número de refugiados disparou nos últimos anos. As solicitações de refúgio passaram de nove, em 2014, para 6.517 em 2017, segundo dados da Polícia Federal. Nas ruas de Boa Vista se encontram dezenas de imigrantes venezuelanos em busca de emprego e a parte conservadora da população da cidade responde à situação com atitudes de xenofobia.
Para discutir essas e outras questões, o Brasil de Fato foi até Roraima conversar com o vice-consul da Venezuela em Boa Vista, José Martí Uriana Moron.
Brasil de Fato - A mídia comercial brasileira tem divulgado que cerca de 30 mil venezuelanos estão entrando sem registros no Brasil. Esse número é real?
José Martí Uriana Moron - Pedi ao Delegado da Polícia Federal migratória do Brasil para me explicar o dado de 30 mil cidadãos que estão dizendo os jornais. Ele disse que a Polícia Federal dá um “permisso”, que seria uma permissão de entrada. O que ocorre é que as pessoas entram e saem. De Santa Elena (cidade venezuelana localizada na fronteira com o Brasil), muitos vêm comprar no Brasil e depois voltam. Esse número de 30 mil não comprova quantas pessoas permanecem no Brasil. Uma pessoa pode no mesmo dia entrar quatro ou cinco vezes e esse número é contabilizado no universo dos 30 mil.
Como funciona a estrutura que recebe os venezuelanos em Boa Vista?
Existem dois ginásios condicionados como centro de refúgio, o de Pintolandia e o Tancredo Neves, que são administrados pela Defesa Civil, Corpo de Bombeiros e pela ONU. Existem cerca de 600 mil venezuelanos, uns 200 mil em Pintolandia e outros 400 mil no Tancredo Neves.
O povo indígena Warao tem sido um dos que mais tem se deslocado para o Brasil. Como está a atual situação deles?
Eles se acostumaram a ser nômades e se habituaram a pedir. No ano passado as autoridades indígenas do povo Pemon se reuniram com os Warao e pediram para que eles saíssem de seus territórios porque estavam dando mau exemplo às crianças e aos jovens. O povo Pemon é reconhecido por ser muito trabalhador e qualquer que seja a atividade produtiva eles não pedem, trabalham. Disseram em assembleia: “O povo não pede para viver, trabalha para viver”. Não queremos que nossos filhos, crianças e jovens vejam vocês pedindo pois podem tomá-los como exemplo de vida.” Os Warao vêm da região do Delta do Orinoco e o delta foi há décadas atrás tomado pela indústria petroleira e pela delinquência. Portanto, os Warao sofreram um processo no qual foram forçados a abandonar suas terras, fruto de uma pressão da indústria petroleira e da delinquência. A palavra Warao significa gente de água. E o que eles sabem fazer é pescar. Ao retirá-los do Delta, seu habitat, eles começaram a pedir nas ruas, pois estão acostumados a viver somente em regiões de água. Agora estão sendo explorados, sendo levados para Caracas, e vão parar dentro dos ônibus para pedir. E vão sendo atraídos para o Brasil também.
Como tem sido a questão da xenofobia em Boa Vista?
Nós detectamos que com a chegada dos venezuelanos em dezembro de 2016 havia certa compaixão e colaboração. Na medida em que foi chegando mais e mais venezuelanos, detectamos que cresceu a xenofobia. E em certa parte por conta de uma ação planejada da prefeitura, que no início do ano divulgou um programa que se chamava “Aluguel Solidário” voltado para o povo venezuelano. Numa roda de imprensa, a prefeita anunciou que daria um aluguel solidário e um mercado solidário para os venezuelanos em situação de refúgio. Essa notícia foi dada numa segunda-feira e na terça-feira havia um protesto. As pessoas foram protestar pois não compreendiam porque a prefeitura estava dando benefícios aos venezuelanos sendo que os brasileiros também estão em falta. Nessa mesma semana disparou-se a xenofobia contra o povo venezuelano. Três dias depois de ter anunciado o programa numa coletiva de imprensa, a prefeitura se retratou e disse que foram mal interpretadas suas palavras e que não pretendia dar mais importância aos venezuelanos do que aos brasileiros. A partir daí se dispararam os níveis de xenofobia contra o povo venezuelano. Os venezuelanos começaram a ser desprezados e humilhados nas ruas e nos mercados.
Qual o tipo de ação que pode combater esse tipo de preconceito?
Nós aqui no Consulado orientamos os cidadãos venezuelanos no sentido de compreenderem quais são os seus deveres enquanto imigrantes. É a única coisa que aqui podemos fazer. Orientá-los. Deixar claro como deve ser o comportamento e os seus deveres. Que todo imigrante quando se encontra como tal, está mais para cumprir deveres que exigir direitos.
Há algum tipo de expectativa na melhora da crise migratória e econômica?
A curto prazo vejo que não. As ações do governo se encaminham para melhorar a economia e o venezuelano regressará para seu país de origem. O venezuelano não tem cultura migratória, é a primeira vez que saem do país. A migração é produto da crise induzida pela qual passa a Venezuela. O país tem um bloqueio financeiro, econômico e comercial, da mesma forma que tem Cuba. Isso nos impede de poder comprar alimentos, comprar medicamentos e outros produtos.
A Venezuela é vista como um mau exemplo para as demais nações. Apesar disso, temos um recurso energético tão importante como o petróleo e criamos as condições de solidariedade internacional através do petrocaribe, abastecendo os países pequenos com petróleo. Isso é um mau exemplo. Ser solidário com a Alba, com o tratamento de enfermidades, destinar recursos a outros países é um mau exemplo. O fato de utilizarmos o nosso principal recurso energético para a solidariedade internacional é um mau exemplo. É isso que acontece, passam a nos criticar e demonizar.
Como se dá a existência e a atuação das máfias na fronteira?
Existem tipos de máfias, as que praticam o micro tráfico, que seria o tráfico de drogas em pequenas quantidades, no máximo um quilo, e as máfias que retiram o dinheiro venezuelano de circulação. No ano passado, quando o presidente Nicolás Maduro disse que ia recolher todos os bilhetes de 100 bolívares, aqui em Pacaraima (cidade brasileira que faz fronteira com a Venezuela), detectaram-se locais cheios de bilhetes de cem em vários lugares. E isso se faz a troco de que? Acreditamos que há também uma conspiração de cunho monetário. No Rio de Janeiro também se detectou uma quantidade imensa de bilhetes venezuelanos. Nos perguntamos: por quê? Concluímos que existe também uma conspiração financeira contra nossa moeda.
E foi comprovado algum tipo de vínculo entre as máfias que atuam na fronteira e grupos políticos de oposição ao governo Maduro?
A verdade é que a Policia Federal do Brasil foi quem anunciou a prisão de bilhetes em Pacaraima e no Rio de Janeiro. No entanto, nós desconhecemos o final do processo, pois as relações entre Brasil e Venezuela estão congeladas, por isso desconhecemos o que concluiu o procedimento aberto pelas Polícia Federal e Militar.
Muito se especula a respeito do comportamento dos militares venezuelanos. Existem máfias de militares na fronteira com Roraima? Alguns deles estão contra o governo ou de alguma forma estão mais distantes do chavismo?
Os militares venezuelanos têm passado por uma revolução também, pois o Exército se integrou. O povo em armas é atualmente as Forças Armadas. Algumas vezes são usadas expressões tais como: “militares que maltratam”, “militares abusadores”, “militares corruptos” para tentar deslegitimar as Forças Armadas. Posso dizer que alguns casos ocorrem, no entanto de maneira isolada. Há militares que atuam de maneira isolada e pessoal, tomando atitudes de delinquência, mas que não representam a instituição.
Até então não existe aqui na região nenhum grupo que faça oposição ao chavismo. A única demonstração de oposição ocorreu no início do ano, mas se deu na capital do país, onde estavam os focos de protesto. Tais militares se pronunciaram de maneira covarde, através de um vídeo gravado e publicado nas redes sociais e depois se esconderam. Roubaram alguns fuzis, publicaram nas redes, mas se esconderam. É uma atitude covarde.
Em termos práticos como está essa situação “congelada” entre Brasil e Venezuela?
Em nível federal, as relações se dão através da Embaixada. Nós do consulado temos relacionamento com o Governo Estadual e a Prefeitura. Por parte da governadora, ela tem sido muito interessada em dar respostas à imigração venezuelana que é produto desta onda migratória. Ela colabora com atenção aos venezuelanos. No entanto, temos notado que há tensões entre o governo e a prefeitura diante do problema migratório. Presumimos que é para busca de recursos federais, pois no mês de janeiro foram deportados em torno de 600 venezuelanos, em um trabalho exercido pela Polícia Federal e coordenado pela prefeitura. A governadora quando soube que a prefeitura tinha ordenado a deportação desses venezuelanos comunicou-se com as autoridades do Ministério Público Federal e num lapso de duas horas foi anulada a deportação. Por quê? Depois descobrimos que ambos os níveis de governo estão em busca de recurso financeiro. E, claro, sem os imigrantes não existe lastro para fazer solicitações de recurso. É o que temos detectado. Em nível municipal há um tipo de ação e em nível estadual há outro tipo, as duas instÇanciais não se comunicam e não trabalham conjuntamente. A prefeitura tem um planejamento e o governo estadual tem outro plano de atenção aos imigrantes venezuelanos.
Que tipo de comércio existe entre Brasil e Venezuela?
Há três anos o Brasil importava muito calcário da Venezuela, pois é bom para as plantações. Do Brasil estamos importando bastante alimentos. Roraima exporta a maioria de seus produtos pra Venezuela, que são basicamente alimentos e bebidas.
Diante de uma escassez nacional de produtos básicos, como ainda é possível encontrar na fronteira produtos básicos em abundância?
Por conta da proximidade com o Brasil. Do Brasil vem o papel, o arroz, o açúcar. Os produtos de marca venezuelana encontrados à venda são controlados pelas mineradoras que através desse comércio criaram uma “economia de delito”. As divisas, a gasolina e o ouro criam uma lavagem de dinheiro e uma reciclagem monetária.
Morando no Brasil, como você avalia a cobertura da mídia brasileira sobre o que acontece na Venezuela?
A mídia brasileira só publica o que é ruim, as coisas boas não são publicadas. Há uns cinco anos, a Venezuela dava cerca de 500 lentes corretivas para o CDI de Santa Elena, quem usufruía disso eram os brasileiros. Isso não era notícia. Em Santa Elena funcionava um centro de reabilitação e fisioterapia gratuitos para brasileiros. A maioria dos pacientes de fisioterapia eram brasileiros, pois em Boa Vista a fisioterapia era muito cara e na Venezuela era gratuita. Mas isso também não era notícia. A grande mídia brasileira está unida ao complô midiático internacional, contribuindo para reforçar a ideia de que a Venezuela é um mau exemplo. Eu gostaria de ver na Globo os protestos que estão acontecendo na Argentina, contra as medidas de corte neoliberais do presidente Macri. Não existe. Isso não existe. Tudo o que ocorre no México: um narco-estado declarado, assim como a Colômbia. Isso não existe para a mídia brasileira.
Edição: Joana Tavares