Golpe no campo

Criminalização de trabalhadores rurais e militantes do MST aumenta após o golpe

Inúmeras sentenças estão sendo expedidas pelo Poder Judiciário no último ano na região do Pontal do Paranapanema

Brasil de Fato | Pontal do Paranapanema (SP) |
Somente na região do Pontal, 12 militantes e trabalhadores rurais foram condenados em segunda instância e tiveram suas prisões decretadas
Somente na região do Pontal, 12 militantes e trabalhadores rurais foram condenados em segunda instância e tiveram suas prisões decretadas - Divulgação

“A gente que é pobre está acostumado a ser esfolado a vida toda, mas ser condenado sem dever nada, é para terminar de nos arrasar”. É assim que o trabalhador rural João*, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) da região do Pontal do Paranapanema, no Oeste de São Paulo, define a dura realidade que tem enfrentado. O agricultor, de 50 anos, que teve sua identidade preservada pela reportagem do Brasil de Fato, foi condenado a cumprir quatro anos de prisão no último mês em um processo judicial que se arrastava nos tribunais por mais de 17 anos.

O processo é fruto de uma denúncia oferecida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, em 2000, que acusou ele e outros militantes de crime ambiental, após a ocupação da Fazenda Guaná Mirim, localizada no município de Euclides da Cunha Paulista. Desde que foi condenado, o trabalhador rural resiste à prisão, que é considerada por ele e pelo MST como mais uma ação arbitrária de perseguição política.

“Não quiseram saber de nada, simplesmente nos acusaram de roubar madeira na propriedade sem qualquer prova. Nos últimos meses, tive que vender gado e não posso mais trabalhar na plantação, mas meus filhos têm fome e a fome só se dá fim com comida. O Poder Judiciário seletivo e o governo golpista estão acabando de estrangular os mais pobres”, complementa.

Assim como ele, outros trabalhadores rurais e militantes do MST têm enfrentado situações semelhantes porque inúmeras sentenças estão sendo expedidas sobretudo após o golpe de estado instaurado no país no último ano. Somente na região do Pontal do Paranapanema, 12 militantes e trabalhadores rurais foram condenados em segunda instância e tiveram suas prisões decretadas. Destes, um está preso, enquanto os demais estão aguardando recurso em instâncias superiores do Poder Judiciário.

Esse é o caso de José*, de 52 anos, militante do MST, que teve prisão decretada no último ano por conta de um processo antigo, aberto em 2006, após participar de ocupações de fazendas improdutivas da região. Com isso, ficou mais de um ano resistindo à prisão. Somente após uma decisão favorável do Superior Tribunal de Justiça (STJ), divulgada em setembro, ele pôde passar a responder ao processo em liberdade.

“Mas ainda estamos em situação desconfortável, esperando a decisão final. Sem contar que esse período que permanecemos afastados nos tira de circulação, ficamos privados de tudo. Não temos contato com os companheiros, não temos um domingo para aproveitar com a família, não podemos trabalhar com tranquilidade. Ocupar não é crime, é lutar por um direito garantido na constituição: o direito à terra”, afirma.

Do mesmo modo que José, Sebastião*, de 61 anos, também militante do MST, teve prisão decretada no último ano como resultado de um processo iniciado em meados dos anos 2000. Para ele, essa é a realidade vivida por militantes de diversos movimentos sociais após o golpe de estado. “São processos antigos que estão sendo desenterrados nesse momento específico. A ideia deles é nos tirar do circuito e nos afastar das lutas. Querem nos deixar com medo, sem poder nos dedicar à luta”, explica.

Na avaliação de Carlos Alberto Feliciano, professor de geografia agrária da Universidade Estadual Paulista (Unesp), a perseguição aos militantes na região do Pontal está intensificada nos últimos tempos. Para ele, a discussão que seria política passou a ser caso de polícia. “O governo não dialoga mais com os movimentos sociais. Não há entendimento de que a luta pela reforma agrária é uma questão social e política, por isso, deixam as resoluções na mão do Poder Judiciário, que a considera como crime”, afirma.

A maior parte dos processos abertos contra trabalhadores rurais e militantes do MST, que participam dos movimentos de ocupação de fazendas improdutivas, trata de acusações de formação de quadrilha, furto, crime ambiental e esbulho possessório. De acordo com Hugo*, militante do MST, os processos têm início com a identificação aleatória de nomes de lideranças a partir de entrevistas que são publicadas nos jornais.

“Os juízes não conhecem a realidade das ocupações e lascam decisões arbitrárias. Hoje, vemos processos sendo retomados com força total. A turma do Temer quer deixar a militância fora do tabuleiro para que as pessoas se acomodem. Estamos perdendo grandes lutadores para o Poder Judiciário”, acrescenta.

Além dos processos antigos que estão tendo decisões judiciais estipuladas nos últimos meses, um agravante que acirra as prisões decretadas aos trabalhadores rurais e militantes do MST é a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de autorizar o encarceramento após condenação em segunda instância. Em outubro do ano passado, o STF decidiu que seria permitido o réu ser preso mesmo antes de se esgotarem todos os recursos previstos na Constituição. A decisão foi justificada pelo Supremo como essencial para o avanço das investigações da Operação Lava Jato.

Na avaliação de Márcio Barreto, do setor de Direitos Humanos do MST, isso mostra o recrudescimento do Poder Judiciário após o golpe. “A justiça se assanhou e quer fazer o que não está na lei. A Constituição pressupõe que há presunção da inocência até o último recurso, mas no entendimento do STF esse direito vai por água abaixo. Com a desculpa da Lava Jato, a justiça seletiva acaba sendo mais dura com os trabalhadores e militantes. É importante dizer que estamos resistindo a essas prisões porque a gente entende que os trabalhadores são inocentes e que tem o direito de se defender”, explica.

Outro ponto que se soma ao contexto de aumento da criminalização dos movimentos sociais hoje é a chamada Lei 12.850/13, que define o que é organização criminosa, novos procedimentos para investigação criminal e as formas de obtenção de provas nesta categoria. Aprovada há pouco mais de três anos, ela permite generalizar o conceito de organização criminosa para qualquer associação de quatro ou mais pessoas que tenham ação estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente. Assim, o texto abre precedentes para enquadrar os movimentos sociais e incriminar seus integrantes como se pertencessem a uma quadrilha organizada para cometer crimes e não trabalhadores que se organizam de forma coletiva para reivindicar direitos sociais assegurados na Constituição.

Um dos exemplos de aplicação da lei de organização criminosa contra militantes do MST aconteceu nos últimos meses na região do Centro-Oeste Paulista. Um inquérito policial foi aberto após ocupações das fazendas Santo Henrique, da empresa Cutrale, em Borebi, e Esmeralda, em Duartina, apontada pelo MST como propriedade de Michel Temer. Neste inquérito, ficou determinado que militantes que participaram das ações seriam indiciados por crimes como esbulho possessório, furto, dano e associação criminosa. Um deles teve a prisão decretada em agosto e, hoje, está resistindo à prisão.

“Todas essas decisões são ilegítimas porque essas pessoas estavam lutando por um direito, pela conquista de algo legal, mas ainda assim foram enquadradas como criminosas. Lutar pela reforma agrária não é crime. Essas pessoas não são marginais, são perseguidos políticos”, conclui Márcio Barreto.

*Os nomes reais dos entrevistados foram trocados por nomes fictícios em respeito ao direito de preservar o sigilo das fontes.

 

Na próxima reportagem, entenda o histórico de conflitos de terra na região do Pontal do Paranapanema.

Edição: Vivian Virissimo