As vezes o poder público é antipovo. Em Campo Largo (PR), por exemplo, no mesmo dia da reintegração de posse que beneficia a construtora Green Valley, o prefeito da cidade, Marcelo Puppi, anunciou o condomínio de luxo Alphaville na cidade. Para isso, as famílias que viviam num pequeno loteamento foram jogadas literalmente no “esgoto”.
Fui até a comunidade Jardim Vitória, no bairro Ferraria, em Campo Largo, município da Grande Curitiba. Era dia 30 de novembro. Estava lá pra acompanhar uma reintegração de posse. Um dia antes, quando recebi a pauta, conversei, via celular, com Renato Oliveira Tavares, 38, presidente da Associação de Moradores Jardim Vitória. Ele deixou claro sua incerteza em relação ao futuro dos 140 moradores que vivem em aproximadamente 40 casas no loteamento.
Pergunto pra ele sobre o destino dessas famílias. “Vão voltar pro esgoto” – respondeu seco. “Esgoto” é o apelido do local onde antes as famílias viviam. Com frequência eles perdiam todos os seus pertences em consequência das enchentes. Renato me disse ainda que a Defensoria Pública havia liberado a ordem de despejo no local, mas que não acreditava que a reintegração aconteceria no dia 30 de novembro.
Para o trabalhador do Hospital Pequeno Príncipe e que é uma espécie de líder dentro da comunidade, era preciso, antes, um diálogo, por vias judiciais, entre as partes. Porém, segundo o próprio morador, a principal dificuldade era que o advogado que antes os defendia alegou que fora coagido.
Dia 30 de novembro – 6 horas da manhã
Mando um ‘whats’: “Bom dia, Renato, como estão as coisas aí?” – “Tem umas 30 viaturas chegando por aqui, piá! Agora!”. Peguei minhas coisas e fui! De Campo Largo sentido Curitiba pra chegar ao bairro Ferraria é preciso pegar a chamada “estrada velha”. Uma antiga via que liga as duas cidades. Uma estrada paralela a BR277, com asfalto desgastado e transporte coletivo ainda funcionando nela.
A região é bonita. Passo por flores, vejo chácaras “classe A” e casas de classe média. Sem contar que às 6 da manhã é possível encontrar pessoas fazendo a caminhada fitness, além dos trabalhadores indo pra labuta. Era minha primeira vez ali. Não sabia direito a entrada pra região da disputa, mas não precisava ser gênio pra sacar. “Muita polícia!” – pensei. Todo bairro foi acordado com os rasantes do helicóptero da PM. Muita gente saia de casa com a cara amassada de sono pra ver o “show”.
Jardim Vitória
Quando parei no que parecia ser a primeira entrada de acesso ao loteamento, a polícia impediu minha passagem. Como havia outro colega de imprensa ali, estacionei e ficamos na aguardo de algo novo. Perguntei novamente ao PM se havia alguma possibilidade do comando liberar a entrada, ele só comentou que seguia ordem e que ninguém estava autorizado.
Avistei um sobrado e fui perguntar pra moradora se podia subir lá no alto da construção pra fotografar. Ela deixou, mas o local não era bom. Entrei no carro e fui rodar pela região. A polícia estava em todos os cantos. Impressionante. De acordo com a PM, aproximadamente 200 policiais foram deslocados pra trabalhar na reintegração.
Rodando o bairro cheguei numa estradinha de chão que dá acesso a lateral do Jardim Vitória. Toda aquela área é bem diferente das belas chácaras da “estrada velha”. Fui me aproximando, de carro, naquela que é a parte alta do bairro. Lá de cima dava pra ver tudo. Apesar da distância. Mas eu precisava entrar no loteamento pra falar com Renato.
Resolvi deixar o carro e descer a pé pelas vielas. No trajeto parei em algumas casas, entrei pra tirar uma ou outra foto do alto. Subi em alguns telhados. As pessoas eram receptivas. Era cedo. As ruas cheiravam café. Entrei numa moradia que na mesa ainda tinha os pães, o salame, as xícaras recém usadas.
Conversei com várias pessoas. Elas reclamaram de um vereador de Campo Largo que vive no Ferraria e que “agora sumiu”! Ninguém estava contente com a presença de tanta polícia, helicóptero, cavalaria e toda aquela violenta demonstração de força.
Depois de descer as ruas, descobri o “esgoto”. É bem na baixada. Passa um córrego. Não tem saneamento básico em algumas áreas. Ali as famílias voltarão a morar. Na região onde a enchente acontece de verdade. Onde “até cachorro morre afogado” – como ouvi dos moradores.
Vi alguns pertences que estavam sendo deixados no local. Então esperei ali. Tinha fogão, geladeira e cobertas. Então apareceu um casal. O rapaz estava visivelmente nervoso, com um pequeno corte logo abaixo do olho esquerdo. Pode ter se machucado enquanto destruía sua própria casa. Sua companheira conversou comigo e disse que eu podia seguir com eles.
Embrenhamos um pequeno matagal. Era mais capim alto e uma trilha que os moradores provavelmente usam pra cortar caminho. “Se a polícia não deixa jornalista entrar, entre conosco”, foi a única frase que o rapaz disse. Ele me indicou onde estava Renato, presidente da Associação Jardim Vitória.
Sua companheira foi ao meu lado. Não me deixaram caminhar sozinho. Ele continuou demolindo sua casa, seu prazo era até o meio dia pra deixar o loteamento. Encontrei Renato. Ele me explicou que a orientação era pra que tudo ocorresse pacificamente. Ficou claro que a passividade era mais por desesperança e cansaço.
Eles construíram uma comunidade em cinco meses, com a área topografada, dividida em terrenos e com uma Associação coordenando as ações; tinha horta comunitária e pequenas plantações de milho.
Green Valley Alphaville
A reintegração de posse aconteceu. A presença do aparato policial, do corpo de bombeiros e do helicóptero,pesou a favor da construtora Green Valley. Fica o questionamento: será que o poder público estará presente na próxima enchente no Jardim Vitória? Será que haverá 200 agentes do estado pra ajudar o povo?
Enquanto isso, a área que antes estava abandonada há mais de vinte anos, está disponível pra construtora. Coincidentemente, na mesma semana que aconteceu a reintegração de posse no Ferraria, o prefeito de Campo Largo, Marcelo Puppi, falou publicamente que seria construído um condomínio de luxo, um Alphaville, na cidade; sem divulgar o local.
O estranho dessa história é que há um documento que comprova a doação do terreno, por parte dos antigos proprietários, aos moradores. “Estamos aqui como doação. Nosso advogado entrou com o processo e foi ameaçado na semana passada. Se encontra coagido”, disse Renato.
30 de novembro – 12 horas
Chegou meio dia. A escavadeira começou a trabalhar. As casas de madeira que os trabalhadores ergueram, foram derrubadas por eles mesmos. O que sobrou significa “o sonho da casa própria sendo destruído pelas máquinas”, como disse Renato. “Eles vão cercar isso aqui, vão superfaturar em cima de uma área que é ambiental”, finalizou.
Quando estava voltando pela trilha que entrei, trombei com uma senhora que me olhou desconfiada e perguntou: “você é da prefeitura?” – respondi que não. “Sou Jornalista”, disse; e mostrei a máquina fotográfica. Após alguns passos, ela gritou: “vê se mostra essa coisa feia que estão fazendo com a gente aqui hoje”.
Edição: Ednubia Ghisi