Na capital federal, no coração do cerrado, uma comunidade indígena resiste ao avanço da especulação imobiliária que tomou conta do país especialmente na última década.
Localizada no chamado "Santuário dos Pajés", a comunidade vive hoje sob intenso aliciamento por parte de construtoras que avançam sobre o território para expandir um bairro de classe alta conhecido como Noroeste. A região tem um dos metros quadrados mais caros da cidade, orçado em R$ 9,4 mil.
Para retirar os indígenas da terra, os especuladores têm feito de tudo: desde prometer bens como carros e imóveis em outras áreas da cidade até promover invasões de fato, com o objetivo de provocar uma migração dos três grupos — Guajajara, Fulni-Ô e Kamuu Wapichana — que hoje habitam o terreno.
Para o indígena Kamuu Dan Wapichana, a atitude ignora o valor dado pela comunidade à terra. "Nós não nos enquadramos na destruição do cerrado pra virar via pra carro. Nós precisamos do carro — eu tenho um carro velho porque eu preciso sair —, mas, se for preciso plantar uma árvore e deixar o carro, prefiro plantar a árvore", afirma.
O avanço da especulação imobiliária compromete não só a cultura indígena, mas também a preservação da natureza. Para se ter uma ideia, a área, que no passado já teve 180 hectares, hoje é alvo de um impasse judicial para o reconhecimento de pelo menos 51 hectares.
A medição consta numa ação — ainda sem sentença judicial — movida pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2003 para que a área seja reconhecida como terra tradicional indígena.
O local tem cerca de 3 mil espécies vegetais catalogadas. Uma riqueza de grande estima para a representante do Santuário, Márcia Guajajara. "Pra mim, isso tem muito mais valor do que um saco de dinheiro que o governo me oferece todo dia", diz.
A área também já foi rica em mananciais, mas sofreu grave redução do volume de água por conta da construção do bairro Noroeste.
O luxo dos prédios vizinhos contrasta com a situação precária em que vivem os indígenas, que não têm água encanada e contam apenas com uma ligação improvisada para o abastecimento da comunidade.
Cerca de 150 pessoas vivem no local, sendo 69 crianças. Os moradores contam que a história do Santuário remonta à criação de Brasília: no final da década de 1950, um grupo de indígenas Tapuya chegou à cidade juntamente com a leva de trabalhadores que veio ajudar na construção da nova capital.
Por conta da tradição, eles precisavam ter uma "casa de reza" e, de acordo com a cosmovisão indígena, a área onde hoje fica o Santuário seria um local sagrado e apropriado para a instalação da casa. Assim, os recém-chegados adquiriram o terreno e deram início ali à construção do Santuário.
O local hoje é ameaçado, entre outras coisas, pela construção de uma estrada reivindicada pelos moradores do novo bairro. O conflito de interesses envolvendo construtoras e indígenas teve início há cerca de dez anos, quando o Governo do Distrito Federal (GDF) começou a anunciar a criação do Noroeste, inaugurado com a promessa de ser o primeiro bairro ecológico do país.
Para Kamuu Dan Wapichana, a iniciativa carrega uma contradição. "É uma sociedade que a gente vê que está destruindo o planeta. E nós fazemos o contrário: estamos defendendo o território", compara.
O conflito envolvendo o Santuário dos Pajés conta com mais de 30 processos na Justiça. Uma disputa sentida à flor da pele pelos indígenas no cotidiano da comunidade. O episódio mais recente se deu na última quarta-feira (29), quando 11 funcionários da Novacap, empresa de construção de obras do GDF, desmataram cerca de 1,5 hectare do terreno.
Segundo os moradores, eles teriam agido com violência e ameaçado os dois indígenas que estavam no local, entre eles Márcia Guajajara.
"Todos nós indígenas sabemos que, quando a gente é liderança de uma terra e não se vende, você morre, porque o branco é assim: ou compra o índio ou manda matar", desabafa a representante, ao falar sobre o episódio.
Veja a galeria de fotos do Santuário:
Os moradores sustentam que a área desmatada está no perímetro protegido por uma sentença cautelar da Justiça Federal de 2013. A decisão resulta de uma ação movida pela própria comunidade para proteger o Santuário enquanto a ação do MPF não tem decisão final.
O advogado dos indígenas, Ariel Foina, destaca que a ação da Novacap pode ser considerada ilegal. "É uma desobediência direta à ordem judicial expressa que proibia exatamente aquilo que foi feito", pontua.
Em nota enviada à imprensa, a Novacap negou as acusações e disse que a área desmatada não pertence ao terreno que é objeto de disputa judicial. Questionada pelo Brasil de Fato sobre o motivo da obra, a empresa respondeu apenas que agiu a mando da Terracap, agência de terras do GDF.
A reportagem também procurou a Terracap com o mesmo questionamento, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria. O episódio está sendo investigado agora pelo MPF.
Edição: Vanessa Martina Silva