Violência

Em Pinhão, no Paraná, 14 mil pessoas podem ser despejadas em benefício de uma empresa

Há meio século, família Zattar era conhecida por enganar moradores e fazê-los assinar venda de terras sem consentimento

Brasil de Fato | Pinhão (PR) |

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Agricultores Nelson e Eva exibem fotografia do terreno onde viveram por 23 anos. Ao fundo, o casebre para onde se mudaram na sexta-feira
Agricultores Nelson e Eva exibem fotografia do terreno onde viveram por 23 anos. Ao fundo, o casebre para onde se mudaram na sexta-feira - Daniel Giovanaz

Uma semana de angústia. A imagem da demolição de uma igreja, que provocou o repúdio de autoridades religiosas na última sexta-feira (1º), foi gravada durante o cumprimento de uma reintegração de posse em Pinhão, no Centro-Sul do Paraná. Cerca de 20 famílias assistiram à destruição de suas casas naquela manhã, em uma localidade conhecida como Alecrim. As mesmas máquinas que arruinaram a igreja também puseram abaixo o posto de saúde, uma padaria comunitária e os espaços de lazer da comunidade. Era o início de um pesadelo coletivo, compartilhado por um a cada dois habitantes do município.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou que os terrenos deveriam ser devolvidos às Indústrias João José Zattar S.A., empresa madeireira fundada há 84 anos e uma das maiores devedoras da União. De acordo com o prefeito Odir Gotardo (PT), Pinhão tem entre 13 e 14 mil pessoas em situação semelhante à dos posseiros que habitavam o Alecrim, com liminares e autorizações para reintegração em benefício da mesma empresa.

Posseiros são agricultores que ocuparam terras ociosas e passaram a utilizá-las para moradia e cultivo. Entre as famílias despejadas, estão cidadãos que moravam há mais de 20 anos na comunidade.

“A efetivação dessa reintegração de posse é a ponta de um iceberg. Porque, se reintegraram uma [área], a ordem é reintegrar todas”, analisa Gotardo. “O cumprimento dessas ações, por certo, vai destruir completamente sete ou oito localidades do meio rural, assim como destruiu essa”, completa. Nas contas do prefeito, quase metade da população do município pode ser despejada nos próximos meses – Pinhão tem 30,2 mil habitantes, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

 


(Foto: Isabella Lanave)

Símbolo

Nelson Enciso de Oliveira, que completa 60 anos no próximo dia 12, foi um dos moradores despejados. “Eu lutei a vida inteira para reunir os trocadinhos para comprar essas posses. Comprei esse terreno de um senhor que já é falecido, em 1995”, conta. O agricultor ressalta que fez a escritura pública do terreno, pagou os devidos Impostos sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) e conseguiu três financiamentos para construir e produzir na área: “Para isso, valeu o meu documento. Mas não valeu para me manter na terra”.

Porcos, galinhas, erva-mate, feijão, batata-doce e outros quatro produtos agrícolas, cultivados há 23 anos no Alecrim: quase tudo ficou para trás. A comoção de Nelson ao lembrar das perdas materiais não se compara ao desespero que vem à tona ao falar da destruição da igreja. “Era um símbolo importante para nós. Foi um desaforo, não tem explicação. Nós que construímos. Tem um pedacinho de cada um: tora, janela, cobertura, prego”, lembra o agricultor. “Eu estou cansado. Depois dessa, não sei mais o que fazer”, lamenta.

Desde o final de semana, os escombros da igreja e das casas no Alecrim são vigiados dia e noite por três funcionários armados da Maxorgani, empresa paranaense de segurança privada. “Esse terreno tem dono. Na estrada, vocês podem circular. Aqui, não”, disse um deles à reportagem do Brasil de Fato, que tentava fotografar a área.

 


(Foto: Daniel Giovanaz)

A Cáritas Brasileira Regional Paraná publicou no dia 4 uma nota de repúdio ao despejo. O bispo Dom Anuar Battisti, da arquidiocese de Maringá, no Norte do Estado, disse que “desalojar famílias, sem sugerir alternativas, é um ataque aos direitos sociais, principalmente aos dos mais pobres, que através de uma luta justa e legítima buscam um pedaço de terra como um caminho para conquistar a dignidade”.

Para Nelson e a esposa Eva Nogueira da Silva, o que restou do terreno onde moraram por 23 anos foi uma fotografia.

Histórico

A família Zattar, de origem libanesa, começou a trabalhar com compra e venda de madeira na região Centro-Sul do Paraná na década de 1940. Desde o Brasil imperial (1822-1889), a região era ocupada por cerca de 8 mil pessoas que viviam em comunidades agrícolas tradicionais, conhecidas como faxinais.

Conforme descrito em um artigo acadêmico publicado em 2010 pela pesquisadora Dibe Salua Ayoub, da UFPR, a empresa comprava madeira das terras dos posseiros e faxinalenses entre as décadas de 1950 e 1980. Os contratos assinados, no entanto, não eram de venda da madeira, mas dos próprios terrenos.

“A população, que naquela época era de maioria analfabeta, assinava contratos confiando que estava vendendo árvores, mas na verdade estava abrindo mão de suas propriedades”, relata a pesquisadora, na página 2 do artigo. “Guardas armados da madeireira, os “jagunços”, iam com frequência às casas das pessoas para pedir que elas assinassem os contratos de arrendos e vendas de pinheiros. Além disso, esses homens armados costumavam queimar paióis, bloquear estradas, matar criações e conta-se, também, que mataram muita gente”.

João Wison Narciso, representante dos posseiros que questionam os despejos no Alecrim, confirma a versão apresentada por Ayoub: “Já existiam posseiros aqui no Pinhão muito antes que a empresa Zattar viesse para cá. Só que, naquela época, não havia preocupação com cartório de registro. Essa empresa chegou aqui no município, usou da força, de jagunços, da pressão. Os contratos, às vezes, as pessoas assinavam achando que fosse a venda da madeira, mas estavam vendendo a terra para a empresa”.

 


(Foto: Isabella Lanave)

O diretor-presidente das Indústrias Zattar, Miguel Zattar Filho, informou que a empresa é proprietária legítima das terras, possui as documentações dos imóveis, e que as famílias que habitavam o local estão cientes do processo de reintegração há mais de dez anos.

Duas medidas

O pedido de reintegração de posse que resultou na destruição da comunidade do Alecrim foi aberto em 1997, tramitou em última instância no STJ em 2004 e retornou a Pinhão em fase de cumprimento de sentença. Naquele ano, o Judiciário intimou parte das famílias e pediu que elas se retirassem da área, sob pena de desocupação forçada.

O prefeito de Pinhão, Odir Gotardo, acompanha os processos desde a década de 1990, e participou como advogado das negociações para impedir o despejo à época da decisão do STJ. “Como não havia mais recurso jurídico, nós acionamos o Estado e pedimos que não fornecesse a força policial, sem a qual é impossível fazer a reintegração. Enquanto isso, pressionamos para que o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] manifestasse interesse na aquisição das áreas para convertê-las em assentamento”, conta.

“Por um período, a negociação andou bem”, acrescenta Gotardo. “A própria empresa proprietária das áreas declarou interesse [em vender], mas todas elas estavam penhoradas, para credores diversos, por isso o Incra alegava que não tinha como adquiri-las”.

Desde os primeiros pedidos de reintegração de posse, dois tipos de ação judicial tramitaram de maneira paralela. De um lado, estavam os processos que pediam o despejo dos posseiros em benefício dos Zattar. Do outro, havia ações de execução fiscal, movidas pela União, para cobrar dívidas da empresa com a Fazenda Nacional e bancos públicos.

“Os processos para reintegrar a área andaram em uma velocidade. Os processos que discutiam as dívidas da empresa com a União andaram numa velocidade bem menor”, compara o prefeito. “Se esses últimos processos tivessem andado mais rapidamente, a União já teria adjudicado essas áreas [reconhecido a posse e a propriedade] há muito tempo, haveria alguma forma de compensação interna, e as terras poderiam ser arrecadadas pelo Incra. A empresa sempre se utilizou bem do Judiciário para postergar o prosseguimento das ações de execução fiscal que a União move contra elas”, analisa.

 


(Foto: Isabella Lanave)

Pelo menos 300 famílias são alvos de ações de reintegração de posse propostas na década de 1990, e todas estão em fase de cumprimento de sentença. “De lá para cá, houve mais centenas de ações. Em todas elas, quando não há sentença, tem concessão de liminar para o despejo”, completa Gotardo. “Todas as [terras] que foram retomadas do Alecrim, e mais 40 ou 50 mil hectares espalhados pelo município inteiro, pertencem à mesma empresa”. Na maioria dos casos, não está prevista a usucapião porque são terras em litígio, com conflitos de interesse entre os proprietários e os ocupantes.

O governo Michel Temer (PMDB) iniciou processos de renegociação e parcelamento de dívidas das Indústrias João José Zattar S.A. no segundo semestre de 2016, através do Programa de Recuperação Fiscal (Refis).

Pesadelo

Todas as noites, Nelson Enciso de Oliveira é assombrado pelas memórias do dia 1º de dezembro de 2017: “Eu estava indo para a cidade às sete e meia [da manhã], e me fizeram voltar. Disseram que eu não poderia sair dali porque iam demolir as casas. Deram 40 minutos para tirar os móveis”, relembra.

Despejado na última sexta-feira, ele mudou-se com a esposa para um casebre, nos fundos da propriedade de um amigo. Os filhos de 18 e 24 anos, que também viviam no terreno, procuram imóveis para alugar na área urbana de Pinhão. “Eu tive dois desmaios dentro da casa, quando começamos a tirar as coisas. Só consegui salvar as portas e as janelas”, conta a agricultora Eva Nogueira da Silva, esposa de Nelson.

Conforme o relato dos moradores da comunidade, até mesmo os policiais militares que participaram a reintegração de posse ficaram comovidos com a situação dos posseiros. Dois deles estavam em prantos e precisaram ser consolados pelos colegas de trabalho. "Pensei que eram barracos, não casas", teria dito um dos policiais, às lágrimas, durante as demolições.

 


(Foto: Isabella Lanave)

Gilberto Martins viveu por 25 anos no Alecrim e foi despejado com o pai e a irmã na sexta-feira. “Eu tinha acabado de me aprontar para sair, quando um vizinho gritou para mim que era despejo. Eu não acreditei e segui em frente”, conta o agricultor. “Depois, vi que estava cheio de polícia e já tinham derrubado a casa do vizinho. Fui avisar o pai, que estava na roça, e o velhinho também não acreditou. Tiramos o que deu, mas muita coisa ficou para trás”.

A lista de objetos entre os escombros inclui cama, sofá, pia, fogão a gás e documentos dos moradores. Não deu tempo de levar nem o cachorro, tamanha pressa para desocupar o local. A casa que Gilberto terminou de pagar há dois anos virou sucata. “O documento de posse serviu para a gente pagar o financiamento para o governo, mas não serviu para a gente ficar na casa”, lamenta.

O catarinense Vanderlei Mattos, cunhado de Gilberto, testemunhou o cumprimento da reintegração de posse: “Presenciei a hora que eles chegaram lá e entregaram um papel dizendo que iam derrubar as casas. Eram umas doze viaturas da polícia e uma caminhonete branca. Os nossos amigos e familiares estavam apavorados, muitos chorando, sem saber o que fazer”. A prioridade era salvar as roupas e o colchão onde dormia o sogro dele, Osvaldo Souza. O fogão a lenha e o banheiro completo ficaram para trás.

A secretaria de assistência social do município localizou os moradores despejados e tem visitado as famílias, desde segunda-feira (4), para listar os medicamentos e as necessidades básicas de cada uma.

Quem não foi despejado vive dias de angústia na zona rural de Pinhão. O técnico em agropecuária Rogério Ferreira comprou há 20 anos a casa onde vive com a esposa e dois filhos, em uma comunidade vizinha ao Alecrim. “Não tem muito o que fazer, só esperar. É triste”, descreve. “A gente sabe que a qualquer momento pode acontecer [o despejo]. As crianças estão traumatizadas, não conseguem dormir direito, choram. Perguntam se vão vir derrubar a nossa casa também”.

Reações

Representantes do Paraná no Congresso Nacional, os senadores Roberto Requião (PMDB) e Gleisi Hoffmann (PT) se manifestaram contra os despejos.

No dia 5 de dezembro, o juiz Gabriel Leão de Oliveira acatou um pedido do Ministério Público Estadual para suspender a reintegração de posse da Fazenda Reta, conhecida como Reta do Zattar, que estava programada para quinta-feira (7) na comunidade do Bugio. O juiz estabeleceu prazo de 10 dias para manifestação do Incra, da Assessoria Especial de Assuntos Fundiários, do governo do Paraná e da Secretaria de Assistência Social de Pinhão.

O deputado estadual Tadeu Veneri (PT) comentou a suspensão e pediu que os moradores sejam autorizados a voltar à comunidade para buscar os pertences que ficaram para trás: “Seria uma insanidade manter essa operação diante do desastre que ocorreu na sexta-feira no despejo das famílias da comunidade Alecrim”.

Com mais de 40 anos de experiência em ações relacionadas a conflitos fundiários, o advogado Carlos Frederico Marés afirma que as reintegrações de posse desrespeitam o princípio constitucional da função social da propriedade.

“A colonização do Paraná foi feita com base na morte de índios, de posseiros, de quilombolas. E o Estado nunca respeitou nenhum tipo de trabalho, posse ou uso efetivo da terra”, critica o jurista. “Os governantes davam [terrenos] para os amigos, os magnatas, e essa concessão de terras devolutas, para proprietários inescrupulosos, é que causou os conflitos que existem até hoje. Se tem gente produzindo na terra, essas pessoas estão cumprindo a função social. Ao contrário do proprietário, que não estava fazendo cumprir”, finaliza.

Rua ou rua

Para o prefeito de Pinhão, Odir Gotardo, não existe saída para o conflito senão a mobilização de todos os cidadãos: “A associação comerciária é solidária, todas as instituições religiosas do nosso município são solidárias”, ressalta. “A comunidade chegou à seguinte conclusão: para a rua, eles vão de qualquer jeito. Ou vão agora, de forma mobilizada, para chamar o incra, fazer assentamentos e impedir os despejos. Ou vão depois, sem nada, sem nenhuma perspectiva, caminhando para a miséria e para o caos”.

Na madrugada de terça para quarta-feira (6), cerca de 800 pessoas interromperam o fluxo de veículos a rodovia PR-170, entre Pinhão e Guarapuava, para protestar contra os despejos. Os manifestantes informaram que vão acampar na região até o Incra se posicionar sobre o caso.

 


 


(Fotos: Daniel Giovanaz)

Agricultores do assentamento Nova Geração, próximo a Pinhão, também participaram do protesto na rodovia PR-170. Um dos representantes do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Nelson dos Santos, elogiou a união entre assentados, posseiros e faxinalenses na luta pelo direito à terra. “O inimigo é um só. É o latifúndio, são as indústrias do João José Zattar. A gente não pode perder a noção que as famílias do MST, com o tempo, também se tornam posseiras e fazem parte da mesma luta”, analisa.

Hoje (7) pela manhã, também houve bloqueios na rodovia PR-459, entre Pinhão e Reserva do Iguaçu.

Odir Gotardo explica por que evitar novos despejos tornou-se prioridade para a Prefeitura: “Não adianta a gente pensar em construir uma estrada ou um posto de saúde nas comunidades rurais se não vai mais haver meio rural nessas regiões. Essas pessoas fazem movimentar a economia do município, gastando e investindo no comércio local. Não teríamos para onde deslocá-los. Não teríamos estrutura pública, a nível de município, para minimizar o impacto dessa tragédia. Então, nós iríamos para o caos”, alerta. “A caneta está nas mãos das autoridades. Ou eles nos conduzem para o município dos nossos sonhos, ou nos conduzem para o caos”.

ATUALIZAÇÃO: Em entrevista ao jornal Fatos do Iguaçu, o superintendente do Incra, Walter Pozzobom, reconheceu pela primeira vez que houve erro na reintegração ocorrida no Alecrim e disse que a situação será resolvida com urgência: "Em sete dias, o ITCG [Instituto de Terras, Cartografia e Geologia do Paraná] vai apresentar um mapa cadastral de todas as posses do município de Pinhão", afirmou por telefone. "O Incra vai analisar [o mapa] para fazer um estudo de viabilidade técnica. Se for viável, o Incra poderá fazer a compra dessas áreas e regularizar os posseiros que estão em cima. (...) Esse mandado [de reintegração de posse] que foi cumprido foi um erro de informações, que causou realmente um prejuízo muito grande. As próximas reintegrações estão sob controle e não deverão ocorrer". 

Edição: Ednubia Ghisi