Natal

Famílias do acampamento Hugo Chávez estão desamparadas pelo Estado

Sem moradia digna e água potável, crianças, idosos e adultos passaram a morar debaixo de lonas e barracos improvisados

Brasil de Fato | Marabá (PA) |

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"A propriedade privada tem mais valor que a tua própria vida", fala Polliane Soares, liderança no MST no Pará
"A propriedade privada tem mais valor que a tua própria vida", fala Polliane Soares, liderança no MST no Pará - Lilian Campelo

Recomeçar depois de muitas lutas não é fácil. É preciso se apegar a sonhos para construir novamente um teto, uma escola, colocar as roupas molhadas no varal e, aos poucos, preencher com esperança o espaço que ficou vazio. É assim que as famílias do acampamento Hugo Chávez, em Marabá (PA), têm levado os dias depois que foram despejadas na quinta-feira passada (14) por determinação da Justiça do Pará, faltando dez dias para o Natal.

As 300 famílias foram acolhidas no assentamento 26 de Março, que também fica na rodovia BR-155. Polliane Soares, da direção estadual do MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, relembra momentos de aflição das famílias quando começou a chover na noite seguinte ao despejo, e não havia um local adequado para abrigar os quatro filhos e as outras crianças das intempéries.

“Eu tenho uma filha de um ano e meio, e a preocupação da gente naquela noite era caçar um pedaço de plástico para cobri-los porque a gente podia molhar, mas eles são mais frágeis do que a gente, então a nossa primeira preocupação ali não era cobrir os móveis, era cobrir as nossas crianças. Passamos a madrugada nisso, correndo para ver se alguém podia ceder um espacinho que já estava feito para colocar as crianças embaixo”, conta Soares.

Desamparo

Para ela e as famílias, o despejo deixou o gosto amargo do desamparo: “A propriedade privada tem mais valor que a tua própria vida. A gente foi simplesmente jogada no meio da rua em pleno período de chuva e não percebemos nenhum tipo de preocupação do Estado. O Estado deslocou um grande aparato para fazer o despejo das famílias, mas não se preocupou em cuidar, em zelar por essas famílias”, chora.

Nesta época do ano é inverno na região Amazônica. A filha de um ano e meio de Polliane acabou ficando doente no dia 19. Ela procurou um atendimento médico, mas não conseguiu no posto de saúde mais próximo. De Marabá até a entrada que dá acesso ao assentamento são 30 quilômetros e mais dez seguindo pela vicinal de chão de barro; chegar lá só é possível em carro ou moto. As crianças e os idosos acabam ficando mais vulneráveis às doenças. Brás Machado está com pressão alta, tem problemas na vista e não se sente bem, tosse muito ao conversar com a reportagem do Brasil de Fato.

Brás Machado está morando debaixo de uma lona; com a saúde debilitada, conta com a solidariedade das pessoas do acampamento / Lilian Campelo

O senhor de 81 anos está morando debaixo de uma lona com uma mala e outros poucos objetos. Ele fez um buraco no chão onde queima madeiras para esquentar comida ou se aquecer à noite. As famílias do Hugo Chávez estão construindo um barraco que lhe proporcione melhores condições.

Natal

Polliane conta que muitas pessoas não conseguiram levar consigo seus poucos objetos, e as que conseguiram tiveram que deixar suas roças, como no caso de Márcia de Souza da Silva Feitosa, de 39 anos, mãe de três filhos. Ela levou o fogão de quatro bocas, uma geladeira de segunda mão, um colchão de casal, algumas panelas e as roupas dela e dos filhos, mas acabou deixando para trás sua roça com quiabo, abóbora e macaxeira. O barraco de Márcia está coberto por uma lona e o piso da casa é o barro. Com tudo pelo que está passando, Márcia não consegue pensar em natal. 

“Não estou com cabeça para o Natal assim, que está chegando agora, já é no final da semana, mas nem moradia nós temos, a nossa cobertura é a chuva”, lamenta.  

Violações

Algumas famílias perderam tudo na chuva e não conseguiram trazer seus objetos e para fazer uma comida improvisam como podem / Lilian Campelo

Darci Frigo, presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, afirma que “não existe despejo sem violação de direitos humanos”.

“Quando você realiza um despejo, você retira a possibilidade das pessoas realizarem os seus direitos: ao trabalho, à moradia, a um lugar para ficar de forma pacífica e poder ter um abrigo decente. Você tira a possibilidade das pessoas, através do trabalho, terem acesso à alimentação. Cria-se uma situação que desarticula a possibilidade de muitas crianças terem acesso ao direito à educação e à saúde, que nessas circunstâncias já é bastante precário”, argumenta.

Tábuas, pedaços de tronco de árvore e paus servem para construir os barracos, a única moradia dos sem terra; lona e palhas servem para cobrir o teto / Lilian Campelo

As famílias no assentamento estão sem água potável no momento. O movimento está providenciando uma bomba d’água e instalarão na área três caixas d’água. Até lá, para tomar banho, lavar as roupas e fazer comida, as famílias têm utilizado a água que passa em um córrego próximo do assentamento.

A escola foi improvisada em um prédio de alvenaria, e os 138 alunos que estudavam na escola do assentamento Hugo Chávez, que tinha sido construída pelos sem-terra, agora têm aulas em um espaço menor.

Elida Cristina Rocha e Ernesto Barbosa Soares, ambos de 12 anos, sentem faltam da escola antiga e com uma baladeira na mão o menino tímido explica: “Porque a de lá [escola] tinha mais vida, tinha mais alegria, a gente podia brincar, tinha mais espaço”.

Apesar de terem visto seus pais desmontarem as casas para levarem pedaços de madeira, deixando plantações, vendo seus cadernos da escola molharem, e ainda perderem o pouco que tinham, muitas crianças ainda brincam e sonham como Elida:

– Qual o teu sonho, Elida?

– Ah, meu sonho é ganhar minha terra.
 

Edição: Mauro Ramos