Um dos maiores discos da música brasileira está completando 20 anos esse mês: "Sobrevivendo no Inferno", dos Racionais MC’s.
O quarto álbum dos caras. Ano de 1997. FHC na presidência do país. Ainda não havia metrô no Capão Redondo e o Cemitério São Luiz ainda era o cemitério com o maior número de jovens negros enterrados do mundo.
Sobrevivendo no Inferno não só foi um marco em termos estéticos e técnicos para o RAP nacional, mas foi e é um marco para compreender o Brasil.
Eu tinha sete para oito anos. Mano Brown tinha 27 anos, a idade que tenho hoje.
Meu tio comprou o CD pirata, junto com o primeiro do Exaltasamba, e esses foram os CDs que mais ouvi no verão de 1998. Talvez tenha sido o meu primeiro contato com os Racionais, com o RAP.
Minha memória é de um monte de meninos correndo atrás de bola na rua com um verso constante sendo repetido o tempo todo “dim dim dom, o RAP é o som”. E isso não apenas me marcou, mas marcou toda uma geração de jovens e adultos que entenderam, nesse disco, que os Racionais MC’s, desde 1989, tinham uma missão e não iam parar.
Por que esse disco é tão importante?
Simplesmente porque, até então, foi o disco que mais e melhor representou a experiência social, racial e emocional do jovem negro periférico. A profundidade e reflexão sobre a subjetividade, angústias, anseios, medos e desejos de um jovem negro, que ressoava com milhões de outros jovens negros no Brasil todo, nunca havia sido abordada de maneira tão poética e verossimilhante.
Há uma expressiva mudança sonora no disco, em relação aos outros trabalhos do grupo. É um disco com mais swing, menos mecânico, menos influenciado pelos grupos de RAP estadunidenses e pelo discurso pastoril de Martin Luther King e Malcon X, onde o discurso é imperativo: "Hey, faça isso. Não faça isso.".
No lugar disso, surgem outras reflexões mais existenciais sobre as escolhas feitas, sobre o futuro, sobre o próprio conflito ideológico do jovem politizado:
Eu já não sei distinguir quem tá errado. Sei lá, minha ideologia enfraqueceu. Preto, branco, polícia, ladrão ou eu, quem é mais filha da puta? Eu não sei (Formula Mágica da Paz).
Os Racionais estão muito mais conectados às suas referências locais e isso se reflete até na escolha das palavras, na dicção. As palavras já não precisam ser pronunciadas com todas as vogais perfeitas, por exemplo. As músicas são cantadas em um tom muito mais coloquial, com mais gírias, quer dizer, dialeto.
É um disco com uma carga muito pesada, carregado de signos religiosos, tanto do cristianismo quanto da fé de matriz africana, o Candomblé e a Umbanda.
A capa do disco é uma cruz de estilo gótico com o Salmo 23, porém, a primeira palavra do disco é Ogun Iê, saudação a Ogun, Orixá do candomblé e da umbanda, sincretizado com a santidade de São Jorge do catolicismo.
Em um show neste ano, Brown explica que essa influência religiosa, católica, gótica, veio da influência de rappers norte-americanos de Los Angeles, de imigrantes mexicanos e caribenhos, por exemplo, que demonstravam sua ancestralidade em suas músicas.
O disco começa com a música Jorge de Capadócia de Jorge Ben, como se fosse, de fato, uma oração para o santo protetor ajudá-los a entrar em um campo de batalha.
Brown reflete sobre o Gênesis e como o ser humano perverteu o que Deus criou e, após citar que apenas possui uma bíblia velha, uma pistola automática e um sentimento de revolta, tenta sobreviver no Inferno.
Inferno esse narrado por Primo Preto, escancarando o violento abismo moral e social que reduz a vida do jovem negro a uma estatística, ao extermínio sistemático por via policial e estatal. Deixando bem claro que a vida do jovem negro em São Paulo é quase ou somente uma sobrevivência em meio a um holocausto urbano.
Minha intenção é ruim, esvazia o lugar
Assim, como um soco na cara, como uma bomba, começa o primeiro verso de Capítulo 4, Versículo 3.
O preto que cantava não tinha dó, não poupava palavras. O preto que cantava esses versos abriu um buraco enorme em relação a tudo que havia sido produzido em relação à cultura brasileira até então.
Nesse mesmo ano, Chico Buarque lançava "Carioca". Caetano Veloso lançava "Livro".
Apesar de serem grandes discos de dois grandes pensadores já muito reconhecidos da cultura nacional, "Sobrevivendo no Inferno" tem uma relevância astronomicamente maior do que as obras desses artistas consagrados da MPB. Carioca, apesar de se adensar na realidade e cotidiano do Rio de Janeiro, é extremamente superficial em relação ao relato sobre o cotidiano contado na própria voz dos Racionais MC’s.
Capítulo 4, Versículo 3, Estou Ouvindo Alguém me Chamar, Rapaz Comum, Periferia é Periferia, Mundo Mágico de OZ, Qual Mentira Vou Acreditar e Fórmula Mágica da Paz são músicas que criam atmosferas, cenários, sentimentos e cenas de riqueza profunda, jamais tratadas anterior ou posteriormente de forma equivalente.
Chamo atenção para Diário de Um Detento, que é a primeira música no cancioneiro brasileiro que também mais e melhor retrata a realidade de um dos fatos socioculturais mais comuns na formação desse país do que o café ou o açúcar, o encarceramento sistemático e violento do homem negro. Além disso, também expõe um dos fatos mais trágicos na história desse país: o Massacre do Carandiru, ocorrido em 1992.
Diário de um detento:
Essa música por si só já é um marco narrativo.
Racionais MC’s é um dos pilares mais sólidos que temos para dar base à uma reflexão sobre a história do povo brasileiro.
Pelo menos, no último século, consigo pensar em Racionais MC’s como parte de um processo iniciado pelos modernistas paulistas, Mario, Oswald de Andrade e Cia, na tentativa de criar, baseados na própria cultura e signos nacionais, uma identidade nacional, seguidos por uma gama de pensadores uspianos, como Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Cândido, Caio Prado Júnior, Milton Santos e muitos outros outros que se debruçaram sobre as bases da cultura brasileira.
Estudiosos esses que influenciaram muitos artistas como, já citados, Chico Buarque, Caetano Veloso e toda Tropicália, movimento que utilizou de enorme bagagem intelectual, religiosa, e ,apoiado por uma crescente indústria radiofônica, consolidou, majoritariamente através da bossa nova, um uma imagem da cultura popular brasileira, por vezes, muito mais branca e fantasiosa.
E essa imagem, essa maneira que se havia consolidado o modo de pensar e cantar o Brasil foi quebrado (como reflete Chico Buarque sobre o fim da canção em entrevista em 2004) e ressignificado com a aparição desses quatro jovens pretos e pobres da Zona Sul e Norte de São Paulo.
“Sobrevivendo no Inferno” talvez tenha sido, por si só, mesmo antes do governo Lula, uma política de autoafirmação da população negra no Brasil, sistematicamente exterminada há séculos.
Cada letra desse álbum daria e já deu muitas teses.
Acho que me alonguei demais aqui.
*Victor Garofano é bacharel em Letras pela Universidade de São Paulo (USP).
Edição: Vanessa Martina Silva