Argentina

'Reforma da Previdência vai prejudicar os mais pobres', diz sindicalista argentino

Membro do movimento Patria Grande, Martín Ogando conversou com o Brasil de Fato sobre cenário político da Argentina

Brasília-DF |
Martín Ogando é membro do movimento Patria Grande e da Associação de Professores da Faculdade de Ciências Sociais da UBA
Martín Ogando é membro do movimento Patria Grande e da Associação de Professores da Faculdade de Ciências Sociais da UBA - Arquivo pessoal

O mundo assistiu, esta semana, a um momento de forte ebulição política na Argentina por conta da reforma da Previdência, finalmente aprovada no país na última terça-feira (19). Como resposta ao avanço neoliberal comandado pelo presidente de direita Mauricio Macri, as grandes mobilizações nas ruas da capital, Buenos Aires, mostraram que a rota política imposta pelo governo não dialoga com os segmentos populares. 

Diante da ameaça de deterioração dos direitos das classes menos favorecidas, a reforma conta com uma ampla frente de oposição, que reúne atores dos mais diferentes espectros. Sobre esse assunto, o Brasil de Fato conversou com o líder sindical Martín Ogando, da Associação de Professores da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA). 

Membro do movimento político e social Patria Grande, Ogando debate ainda temas como o cenário econômico internacional e seus efeitos no país e fala sobre a importância do internacionalismo como bandeira central para as lutas dos povos. Confira a seguir os principais trechos da entrevista. 

Brasil de Fato: O mundo assistiu a um intenso processo de resistência dos segmentos populares argentinos à proposta de reforma da Previdência. Quais sãos os principais prejuízos que a medida traz para o trabalhador?

Martín Ogando: A reforma representa um ataque ao bolso de aposentados e pensionistas, incluindo os que têm deficiência, os ex-combatentes da Guerra das Malvinas e ainda todos os beneficiários do abono universal por filho [programa de transferência de renda baseado no número de filhos]. Basicamente, o que foi aprovado é a modificação da fórmula usada para a atualização anual dos valores, que foi fixada de acordo com uma lei anterior, do governo de Cristina Kirchner, e essa modificação significa uma poupança para o governo nacional e, portanto, dinheiro que se deixa de pagar aos beneficiários de aposentadorias e pensões, num montante equivalente a 100 bilhões de pesos anuais [cerca de R$ 18,5 bi] até o ano de 2018.

Para dar um exemplo muito concreto, no caso de um pensionista que recebia o mínimo de 7.246 pesos [aproximadamente R$ 1.300 aprox.] com a fórmula que estava em vigor, ele passaria a receber 8260 pesos [aproximadamente R$ 1.500] com o primeiro aumento que estava previsto para o primeiro semestre do próximo ano, mas, com a aprovação da nova fórmula, ele passará a receber 7.659 pesos [aproximadamente R$ 1.400]. Ou seja, temos praticamente 600 pesos de diferença que são cortados diretamente do salário que temos hoje, sob a desculpa do ajuste fiscal, da necessidade de reduzir as despesas do Estado. Estamos enfrentando um ataque direto ao bolso dos trabalhadores passivos, isto é, dos aposentados, pensionistas e beneficiários do abono por filho, que são os setores mais vulneráveis de nossas classes trabalhadoras.

Quais atores protagonizaram os protestos? Há unidade entre as forças de esquerda do país em torno da reforma?

Essa medida teve como uma das principais características justamente a constituição de uma grande frente de oposição. Sem dúvida, é a medida mais repudiada e, nesse sentido, conseguiu unir a oposição parlamentar também, à medida que se criou esse amplo cerco de organizações contrárias à reforma, incluindo a liderança da Confederação Geral do Trabalho (CGT), que é a principal central sindical hesitante. Mesmo que ela tenha feito isso com vacilações – isso precisa ser dito –, pelo menos formalmente teve que convocar uma medida de força, mobilizar e se pronunciar contra a reforma. Setores mais combativos do movimento dos trabalhadores se mobilizaram e criticaram a medida. Um amplo espectro político se colocou contra, incluindo aí setores do peronismo, do kirchnerismo, o Movimento Evita, distintas organizações da esquerda mais tradicional, entre outros.

No ambiente parlamentar, um bloco de deputados de vários espectros, inclusive de setores de uma oposição mais moderada, votou contra. A realidade é que, nas ruas, mostrou-se uma unidade não só entre setores da esquerda como do movimento popular num sentido amplo, de setores do peronismo. Como se sabe, na Argentina, o fenômeno do peronismo tem mantido uma grande força entre as classes trabalhadoras, e isso tem reduzido a possibilidade de incidência dos contingentes populares, os contingentes das classes trabalhadoras dos setores da esquerda mais radical ou da esquerda num sentido político ideológico.

3) É possível comparar o momento atual com o que se deu no país em 2001?

Acho que a questão tem duas respostas possíveis. Em primeiro lugar, se abordarmos o contexto das mobilizações na quinta passada (14) e especialmente na ultima segunda (18), evidentemente, para todos os que participaram dessas demonstrações em dezembro de 2001, a memória trouxe uma série de reminiscências e memórias muito importantes - não só pela coincidência das datas, mas também pelo acúmulo gerado nas organizações populares e em todo o povo argentino de uma grande capacidade de resistência, de luta e uma tendência a transbordar os canais políticos institucionais para dominar seus líderes políticos e sindicais e fazer a luta de rua, um terreno fundamental de disputa. 

A democracia é empobrecida quando não há pessoas na rua, quando o sistema do partido é preso exclusivamente pelas elites e grupos de poder, os meios de comunicação de massa e os grandes negócios e a democracia. Por outro lado, é claramente reforçada quando as pessoas mostram a vitalidade demonstrada pelo povo argentino. Nesse sentido, pelo nivel de violencia da repressão policial e pela capacidade de enfrentamento dessa violencia por parte da maioria dos manifestantes, pelas mobilizações espontâneas de segunda à noite, pelos panelaços, obviamente muito disso nos remete ao clima de luta das jornadas de 19 e 20 de dezembro de 2001.

Agora, em um segundo sentido de análise da situação política e econômica, estamos em um momento muito distinto do de 2001. Primeiro, porque nao estamos numa crise econômica de magnitude. Do ponto de vista das fortalezas e das debilidades do governo, também é importante identificar que nos encontramos nao com um governo em seu momento de declive, de crise, mas nos encontramos frente a um governo que ainda conta com apoio popular em sua própria base, que foi legitimado nas eleições de até pouco tempo, do mês de outubro. E, nesse sentido, seria irresponsável da nossa parte -- pelo movimento popular, da oposição -- subestimar a capacidade do governo Macri de se recuperar dessa situação. Creio que estejamos diante de um governo que enfrentou uma crise concreta nesses ultimos dias, mas que nao se encontra em crise, estruturalmente falando, que nao se encontra de nenhuma maneira em seus últimos dias e que tem capacidade de resposta e de contra-ataque. Então, nesse sentido, a situação é bem distinta da de 2001.

Que conexão tem com o cenário internacional esse processo de avanço neoliberal vivido pela Argentina sob o governo Macri? 

Creio que existem duas grandes conexões com o contexto internacional, uma das quais é favorável e a outra é um pouco uma limitação ou uma complexidade para as tarefas que devem ser levadas adiante. A favor há, claramente, o fato de que o triunfo eleitoral de Macri em 2015 se insere numa onda de contraofensiva conservadora, ofensiva do capital contra o trabalho em uma escala continental, que faz parte de golpes de Estado, como sofreram Honduras e Paraguai, e o próprio golpe contra Dilma, no Brasil, e o governo Temer. Também o assédio permanente ao processo venezuelano. Efetivamente, o ciclo político da América Latina nos mostra uma situação mais defensiva. Isso torna o governo Macri duplamente perigoso, digamos. A Argentina é um projeto-piloto, uma dos testes que estão ocorrendo na América Latina, mas que faz parte de um avanço continental.

Ao mesmo tempo, o contexto internacional que tem que enfrentar o governo Macri é muito distinto, por exemplo, do que teve que enfrentar Carlos Menem no primeiro avanço neoliberal da década de 1990. Me refiro fundamentalmente ao contexto econômico. Hoje, o contexto internacional é outro, é mais frágil. É o contexto de um capitalismo que não termina de superar os efeitos da crise de 2008-2009. Então, encontramos aqui um calcanhar de Aquiles do governo Macri no contexto internacional, e isso não se dá pela resistência popular, mas sim pelas próprias condições que assume este momento do capitalismo em escala global.

O Brasil vive também um processo de acentuação da política neoliberal sob o governo Temer. Diante disso e do exemplo de luta do povo argentino, que mensagem você, na condição de militante, deixaria ao povo brasileiro?

Estamos diante do grande desafio de resistir, de resistir em unidade com o conjunto de organizações populares, qualquer que seja a sua afiliação ideológica política, mas, ao mesmo tempo, que façamos um amplo debate de estratégias, um amplo debate de ideias, para pensar o que é o projeto popular, o projeto esquerdista, socialista -- do nosso ponto de vista, para o contrapor em um sentido histórico ao que hoje expressam as classes dominantes com o neoliberalismo na América Latina.

E, nessa luta, está claro que o objetivo é continental. Está claro que o internacionalismo é uma bandeira central de nossos povos, que o golpe no Brasil tem sido um golpe impressionante para as classes trabalhadoras e populares na Argentina.

Então, nesse sentido e coerente com o compromisso que muitos de nós temos para a construção da ALBA de Movimentos Sociais, para o trabalho internacionalista com diferentes organizações no Brasil -- onde a Frente Popular Brasil é uma referência muito interessante neste processo de reconstrução de um projeto à esquerda, de um projeto popular para o Brasil e que também tomamos como referência para pensar possíveis expressões desta na Argentina --, neste momento é fundamental a solidariedade entre os povos. E estamos em momentos de luta, estamos em momentos de resistência, mas o futuro é nosso. O futuro pertence aos povos.

Edição: Mauro Ramos