O disco Chaos A.D, lançado em 1993 pelo Sepultura, traz em sua faixa inicial os batimentos cardíacos de Zyon, primogênito do então vocalista Max Cavalera. Um disco com temática do caos e que traz como acordes iniciais um coração cheio de vida pulsando. “Who’ll be alive?”, questiona a música. Falar sobre sensações e expectativas que uma mãe tem ao gerar o filho pode ser audacioso demais. Mas assumo o risco, porque imaginar é inerente aos seres de polegar opositor e tele-encéfalo desenvolvido.
Imagino que todo cuidado ao bebê é garantido por aquela que escolheu continuar a gestação e, assim, os exames periódicos do pré-natal assumem o papel de prevenção contra algumas intempéries da vida. O Ministério da Saúde possui cartilhas falando da importância de realizar os exames, trazendo brevemente algumas indicações de possíveis problemas para quem não faz o acompanhamento. Em clínicas caras e especializadas ou no moroso SUS, vale a pena ter esse cuidado.
Contudo, a atualização dos problemas “mudernos” (acho massa esse sotaque) acompanham a obsolescência de seu smartphone e a cada dia surge um “trem” novo para nos preocupar, preocupar sobre a saúde do bebê e também alavancar a indústria farmacêutica. Mas, infelizmente, nem tudo é virose (apesar de que algumas qualidades de médicos vão discordar de mim). E as crianças de Minas Gerais, em especial aquelas do entorno do rio Doce, precisam conviver com problemas que só no futuro, já com as sequelas, saberemos as consequências.
O que há de se esperar da utilização de água contaminada por lixo de mineração? Estudos apontam que metais pesados podem gerar problemas neurológicos, mas ainda não há certezas e as pessoas têm utilizado a água contaminada, para higiene ou alimentação.
Em 1987, em Goiânia, um vazamento de Césio marcou a vida de famílias para sempre. Morte, degenerações, câncer. Já são mais de 30 anos e não é possível determinar todas as consequências de terem esquecido lixo radioativo em uma obra abandonada. Tanto em casos como o Césio 137 e agora o rompimento da barragem (ou crime da Samarco, como prefiro), o Estado não garante o bem-estar social frente aos impulsos neoliberais mercadológicos.
Gravidez pós lama
Em Periquito, leste de Minas Gerais, Valéria está no oitavo mês de gestação. Moradora da zona rural, próximo às margens do rio Doce, ela utiliza água de um poço que começou a ter cheiro e gosto a partir do final de 2015, depois do rompimento da barragem de Fundão. A mãezona não está preocupada com o quartinho da segunda filha que ainda não está pronto. Sua angústia é para saber como ela vai poder dar banho em um recém-nascido com a água que eles têm disponível. Tímida mas guerreira, Valéria falou pouco mas lançou uma pergunta, já com uma resposta daquelas que tiram o chão: “Tudo em criança é sensível, como eu dou banho em um bebê com uma água contaminada dessa? Eu não tenho condições pra comprar água pra poder dar banho. Vai ter que ser essa água mesmo”. É Valéria, boa hora para você e a sorte está lançada ao bebê.
Distante cerca de 259Km do epicentro do maior desastre sócio ambiental do Brasil, o município de Periquito é atendido pela Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais). A empresa afirma que as águas que abastecem o município sempre foram retiradas e tratadas do córrego Tavares, e, por isso, a cidade não precisa ser considerada como uma atingida pela contaminação do rio Doce. Essa informação isenta as autoridades e a Renova (empresa criada pelas mineradoras depois do desastre) de darem soluções para os infortúnios causados e, obviamente, Valéria e demais atingidos não terão apoio justo para resolução dos problemas. No melhor estilo Pôncio Pilatos, autoridades lavam as mãos nas águas sujas do Doce.
O MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) presta suporte aos atingidos do Vale do Aço e do Vale do Rio Doce e, durante uma reunião do grupo em Periquito, a simplicidade da fala e do pensamento de Jandir Arcanjo, conhecido como Jandirinho, supera a burocracia e interesses políticos: “eles acham que só quem ficou debaixo do barro é atingido”. E continua, “é verdade que a COPASA busca água no córrego Tavares, mas na época de seca, quando ele não dá conta de abastecer a região, eles enchem os caminhões pipa no rio Doce e abastecem a cidade”. De acordo com um documento emitido pela COPASA, isso não acontece, mas segundo testemunhas, sim.
A dúvida de Valéria sobre o banho que dará em sua filha me causou certo transtorno interno, mas não dá pra esquecer questões “menores” de outros atingidos. Morador há mais de 10 anos da zona rural de Periquito, Lisney de Souza, o Ney, disse que cerca de seis meses depois do rompimento a cor da água do poço começou a mudar. “Começou a sair minério e dar coceira, principalmente nas duas crianças”. Preocupado por estarem a menos de 400 metros do leito do rio Doce, Ney afirma que chegou a “usar água de chuva para não usar água do poço”. Outro cuidado é a lavagem da caixa d´água, que tem que ser feita a cada 15 dias. Além disso, “a cada dois meses eu tenho que trocar o chuveiro. Ele queima a resistência por causa do minério”.
Imagino que, como mãe, Valéria quer o melhor para sua família, mas acho que ela se empolgou com o clima natalino que cercava nossa conversa e acabou pedindo demais para o Papai Noel (o bom velhinho da Coca Cola): “não quero indenização em dinheiro, quero água limpa como antes”. Se o Chaos AD começa com um coração pulsante, a sua canção final traz reflexões para uma vida de quem tá acostumado aos desequilíbrios, mas que também não pode se acomodar: “Pain, makes me estronger everyday. Life is chaos, you gotta deal with it. Expressing my agressions through confusion. Face reality nothing is like it used to be (A dor me fortalece todos os dias. A vida é um caos, você tem que lidar com isso. Expressando minhas agressões através da confusão. Face a realidade nada é como costumava ser)”. Força e resistência.
*Nilmar Lage é jornalista, tem apreço pela experiência de ser acolhido pela cumplicidade das pessoas com quem lida e transformar isso em histórias, materializando essas vivências através da fotografia e vídeo documental, ou da agressividade sonora do hardcore.
Edição: Joana Tavares