Fiquei extremamente melancólico com as notícias vindas da Caixa Econômica Federal, instituição financeira pública federal (100% das ações do Tesouro Nacional) em que tive orgulho de ser vice-presidente entre fevereiro de 2003 e maio de 2007, durante o primeiro mandato do governo Lula. O estado de tristeza profunda e apatia sentido continuamente por mim se justifica pela maneira em se conduziu (e continuará sendo conduzido) o processo de seleção de quadros dirigentes dessa instituição fundamental para implementação de políticas públicas no País.
Hoje (19/01/2018), o Conselho de Administração (CA) da Caixa reúne-se para aprovar o novo estatuto da instituição financeira. Nele está previsto a contratação de uma consultoria externa para fazer a seleção e avaliação técnica dos executivos que almejam ocupar o cargo de vice-presidente. Somente depois dessa seleção prévia, os executivos serão submetidos à aprovação do Conselho de Administração. Para a presidência do banco, a indicação continuará sendo feita pelo presidente da República.
Atualmente, o CA da Caixa conta com sete representantes, sendo cinco do Ministério da Fazenda, um do Planejamento e um dos empregados da instituição. A presidente é a secretária do Tesouro e o vice-presidente é o presidente-executivo do banco, nomeado por indicação de um partido político da base governista que deu o golpe semi parlamentarista no regime presidencialista.
O relatório da investigação independente realizada pelo escritório Pinheiro Neto na Caixa, a pedido da própria instituição, registra um e-mail do gabinete do então vice-presidente Michel Temer para um vice-presidente, pedindo uma nomeação para cargo de superintendente regional. O documento detalha, por exemplo, que o ex-ministro Geddel Vieira Lima (e ex-VP da Caixa) monitorava de perto operações de interesse de parlamentares “cobrar por fora”. O relatório também cita que alguns VPs mantinham reuniões com o ex-deputado Eduardo Cunha.
O relatório faz também uma série de recomendações para melhorar mecanismos de controle do banco bem como sugere aprofundar as investigações sobre certos funcionários e fatos abordados nas operações policiais Origem, Cui Bono, Sepsis e Patmos, com indícios de pagamento de propina envolvendo financiamentos do banco. O “emedebismo” continua. Por exemplo, o ministro-chefe da Secretaria de Governo, Carlos Marun, chegou a dizer que o governo temeroso está negociando a liberação de empréstimos da Caixa aos estados em troca de apoio à reforma da Previdência!
A parte do relatório referente à avaliação das operações policiais sugere um aprofundamento da investigação relativa aos contratos de publicidade da Caixa e dos gastos com patrocínio feitos pela instituição, que subiram de R$ 55 milhões em 2011 para R$ 455 milhões em 2017. Ainda é recomendado que seja feita uma auditoria em todas as operações da J&F, JBS SA, JBS Aves Ltda., Flora, Vigor, Eldorado e Marfrig.
No relatório final, o escritório afirma que “a investigação independente pôde atestar que a relação próxima entre membros da alta administração e os grupos políticos que lhes dão sustentação acarreta grave risco à Caixa”. Entre as recomendações está a criação de mecanismos de indicação de vice-presidentes e diretores executivos com base na Lei das Estatais e, também, que o CA seja o responsável pelas nomeações, e que os nomes sejam escolhidos com base em lista elaborada por consultoria independente especializada em recrutamento de executivos de renome e experiência, levando em consideração, entre outros, os empregados do banco.
Essa sugestão, que deve ser acatada no novo estudo do banco, parece-me ser típica da visão privatizante prevalecente na casta dos mercadores. Ela impõe, atualmente, seus interesses e valores empresariais ao Estado brasileiro. Os riscos são dois.
O primeiro é o risco di Lampedusa, autor do romance Il gattopardo (O Leopardo) sobre a decadência da aristocracia siciliana durante o Risorgimento, em que a única mudança permitida é aquela sugerida pelo príncipe: “tudo deve mudar para que tudo fique como está”. Em outras palavras, torna a escolha indireta: o governo nomeia membros do CA subservientes à coalização partidária semi parlamentarista, e estes nomeiam, por sua vez, os funcionários que buscam apadrinhamento político junto a parlamentares, governadores e/ou ministros. Continua a nomenclatura partidária dando os nomes.
O segundo é o risco headhunter de privatização do Estado brasileiro. Headhunter é um termo em inglês que significa “caçador de cabeças”. Ele poderá selecionar só profissionais do mercado de trabalho privado, em áreas executivas, considerando apenas a qualificação microeconômica do profissional experiente em “boas práticas empresariais”. Mas se trata de exercer um cargo que exige, antes de tudo, visão holística ou sistêmica, conhecimento técnico-operacional e macroeconômico, espírito de servidor público, e reputação ilibada. Servir à estratégia nacional – e não a O Mercado.
A reputação ilibada figura como requisito para a investidura em diversos cargos públicos. Pelo conceito constitucional, considera-se detentor de reputação ilibada o candidato que desfruta, no âmbito da sociedade, de reconhecida idoneidade moral, que é a qualidade da pessoa íntegra, sem mancha, incorrupta. Tipo VPs do emedebismo?!
Trata-se de uma condição subjetiva. Ela se associa à boa fama, ao comportamento público e à respeitabilidade do pretendente. A reputação do candidato deve inspirar a estima de seus pares, mas é distinta de conduta proba compatível com o cargo público. Ora, sob o ponto de vista dos membros de uma nomenclatura, o que é “competência”?
Todo o conjunto dos membros do partido político é considerado “competente”. Dentre os quais estarão os indicados para ocupar os altos cargos no governo e nas empresas estatais. Poderão gozar de privilégios particulares nessa escolha. Mas a escolha de privilegiados do setor privado também se dá em uma rede de relacionamentos pessoais.
Networking é uma palavra em inglês que indica a capacidade de estabelecer uma rede de contatos ou uma conexão com algo ou com alguém. É um sistema de suporte onde existe a partilha de favores e informações entre indivíduos ou grupos. Eles têm um interesse em comum, por exemplo, uma ideologia neoliberal ou um carreirismo profissional, tipo toma-lá-dá-cá, entre colegas da mesma escola de pensamento. É uma palavra inevitavelmente relacionada com o contexto empresarial privado e indica uma atitude de procura de contatos com a possibilidade de conseguir subir na carreira.
Enfim, considero essa típica solução de CEOs de grandes corporações privadas e/ou de suas consultorias – transferir a responsabilidade de escolha de seus pares para os headhunters – não adequada para ser adotada pelo setor público nacional.
Aliás, ressalvo que, seja à direita (neoliberalismo), seja à esquerda (intervencionismo), essa prática brasileira de QI (Quem Indica), adotada pelas castas dos mercadores, oligarcas governantes, trabalhadores sindicalizados e sábios-sacerdotes evangélicos, é abominada pela casta dos sábios-universitários intelectuais. Por que? Porque estes últimos têm uma carreira profissional de mérito, baseado em defesa de teses originais julgadas por bancas e publicações reconhecidas pelo público.
Portanto, defendo que o Brasil adote as boas práticas internacionais de escolha de seus quadros dirigentes entre uma elite formada de maneira exigente e baseada em méritos com foco para assumir essa tarefa pública. Elite pode ser uma referência genérica a grupos posicionados em locais hierárquicos de diferentes instituições públicas, partidos ou organizações de classe, ou seja, pode ser entendido simplesmente como aqueles que têm capacidade de tomar decisões políticas ou econômicas dentro de uma estratégia nacional. E não dentro de uma estratégia empresarial de conquista de mercados, típica de uma sociedade de executivos de renda e riqueza concentrada por bônus.
Elite pode ainda designar aquelas pessoas capazes de formar e difundir opiniões que servem como referência para os demais membros da sociedade. Neste caso, seria um sinônimo tanto para “liderança”, quanto para “formadores de opinião”.
Um modelo baseado em julgamento objetivo de méritos seria um princípio ideal para promover os indivíduos dentro de instituições financeiras públicas. A escolha de dirigentes deveria se dar em função do mérito (talento ou aptidão, trabalho, esforço, competência, inteligência, virtude) de cada um, e não em função das relações individuais (corporativismo, fisiologismo, cooptação ou nepotismo), seja com a casta de oligarcas governantes, seja com a casta dos mercadores.
A carreira profissional de servidor público deveria oferecer, a cada um, aquilo que ele se mostrasse digno de obter, considerando seus méritos objetivos. Necessitaria de medidas de uma política afirmativa para compensar a desvantagem inicial dos indivíduos social ou economicamente desfavorecidos e dar igualdade de oportunidades.
Contra o corporativismo, o fisiologismo, a cooptação ou o nepotismo, talvez a solução para o problema de interferência política na escolha de dirigentes nos bancos públicos, inclusive para os do Banco Central do Brasil, fosse a exigência, para todos os candidatos, de formação em uma Escola Superior de Administração Bancária. Defendo o Estado brasileiro criar essa pós-graduação de excelência à semelhança do Instituto Rio Branco do Itamaraty ou da ESAF – Escola Superior de Administração Fazendária. Se tanto servidor público concursado, quanto profissionais interessados na carreira, todos fossem obrigados a ter cumprido essa obrigação, previamente a qualquer indicação governamental, a qualificação seria superior.
Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP e autor de “Brasil dos Bancos” (2012) e “Bancos Públicos no Brasil” (2016). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail
Edição: Jornal GGN