Até pouco tempo, uma criança kaingang ou guarani não tinha livros ou material para aprender a ler e escrever na língua de seu próprio povo. A alfabetização que restava era em língua portuguesa. Com os mesmos livros que outras crianças, de escolas não-indígenas, que viviam uma vida fora da aldeia, recebiam no início do ano. As últimas apostilas que haviam sido impressas com foco nas línguas indígenas eram dos anos 1970.
No Rio Grande do Sul, o cenário para as duas maiores etnias do Estado começou a mudar pelas mãos dos próprios professores indígenas, a partir do projeto “Saberes Indígenas”. Segundo o site do Ministério da Educação, a ação oferece formação bilíngue ou multilíngue em letramento e numeramento em línguas indígenas e em português, conhecimentos e artes verbais indígenas para professores. O curso, que é presencial, é oferecido em instituições públicas de ensino superior de todo o país. Pelo menos 24 universidades compõem a rede da iniciativa.
Os resultados e desafios do projeto foram discutidos e apresentados, nesta terça-feira (16), na Faculdade de Educação (Faced), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituição que hospeda o projeto no Estado.
“Esse trabalho resgatou muito da especificidade da cultura indígena, trouxe auto-estima, autonomia para os professores. Houve uma mudança no perfil político-pedagógico dos professores, na sua relação com suas comunidades. É um trabalho muito importante, ainda em desenvolvimento”, diz Maria Inês de Freitas, professora kaingang da Terra Indígena Guarita.
Com recursos do governo federal, o projeto ajuda a desenvolver material didático, como cartilhas de alfabetização, conteúdo com foco em histórias, lendas, rituais e cultura de cada povo.
“No material, temos cantos, histórias, alfabeto, tudo na língua kaingang e guarani. O material guarani traz uma cartografia de locais onde eles estiveram. No caso dos kaingang, tem cantos que eles podem ouvir e a partir deles buscar novos cantos. São materiais que as crianças podem manusear”, conta o professor Bruno Ferreira, doutorando em Educação, na UFRGS.
Professor kaingang na Terra Indígena Inhaporá, em São Valério do Sul, ele conta que percebeu ainda um impacto grande para os próprios alunos, no simples fato de verem a sua língua e sua escrita em um material de ensino.
“Na sala de aula, o projeto tem produzido um impacto ainda maior, que é dizer: a nossa língua tem importância. Os alunos começam a ver esse material e dar valor à língua. Ela tem utilidade, está escrita ali. Com esses materiais, os professores podem usar a língua indígena de forma direta e como modelo para produzir novos materiais”, segue ele.
Para Joel Kuaray, professor guarani da aldeia Araudú Verá, em Erebango, o projeto ajudou a ter a cultura de seu povo – geralmente mais restrita, segundo ele – aberta a toda a sociedade. Os cantos, danças, rituais, lendas de dentro da aldeia, ganharam um meio para se tornarem de conhecimento aberto. Todos os 55 professores guaranis do Rio Grande do Sul estão integrados ao projeto. Mas, além de divulgar a cultura, Joel também acredita que a iniciativa faça questionar.
“Quando a gente monta um calendário escolar, ele tem que estar de acordo com o sistema do governo. Se você tenta mudar, para incluir datas indígenas, respeitando a cultura guarani, o próprio sistema não aceita. Essa forma, um dia ou outro vai ter que mudar”, explica ele. “Esse projeto está conseguindo incentivar os professores a ter mais informação. O professor indígena, hoje, não pode ficar apenas na formação do magistério. Precisa de mais conhecimentos, até para mudar esse sistema também”.
Desde 2014, os contratos de renovação do “Saberes” têm duração de apenas dois anos. Ao final de cada um, há que ser feita uma nova negociação junto ao governo da vez.
“Estamos tentando fazer com que o MEC, a Secretaria de Educação reconheçam nos currículos uma disciplina de cultura indígena. De forma fixa, que não dependa de negociação nenhuma, que seja aplicada nas escolas, desde a 1ª série”, defende o cacique João Padilha, da comunidade kaingang do Morro Santana, em Porto Alegre.
Segundo ele, que foi professor na disciplina de mesmo nome, oferecida a alunos da graduação da UFRGS, o projeto é uma “reivindicação da cultura indígena” e uma maneira de integrá-los como parte da sociedade. Num país onde, mesmo com leis nacionais e internacionais reconhecendo os direitos dos povos originários, ainda falta que os governo as cumpram. “Precisamos que autoridades garantam a continuação desse programa”, disse ele durante o encontro.
Bruno é otimista. “Eu acredito que a gente vá conseguir manter, porque temos argumentos. Os argumentos estão na utilização do material e na qualificação dos professores”. Ao ver seus alunos mudando a relação com a comunidade, com a própria família, graças ao material que levam para casa, para estudar, ele vê um novo caminho.
Edição: Sul 21