São Paulo – O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), tem esperança de que a maioria do Judiciário brasileiro seja capaz de corrigir as "aberrações jurídicas" observadas na parcela do sistema de Justiça que conduz o caso Lula nas instâncias inferiores. Mas não se ilude: sabe que esse mesmo sistema também está permeado por conflitos e interesses, ideológicos e de classe. Assim como esses se oporão de maneira possivelmente acirrada – ainda não se sabe como – nas eleições de 2018.
Dino concedeu duas entrevistas nesta segunda-feira (29) em São Paulo. Gravou com Juca Kfouri participação no programa Entre Vistas, da TVT (assista à íntegra mais abaixo). Em seguida, falou com jornalistas e blogueiros no Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. O ex-juiz – que deixou a magistratura para atuar na política – fez seu diagnóstico sobre o que moveu os desembargadores que ratificaram a condenação de Lula no TRF4, em 24 de janeiro. "Impressionou o nível de ódio dos julgadores. Deixaram, lamentavelmente muito visível: Nós somos a Casa-Grande. E Lula será sempre a Senzala."
Juca Kfouri abre a entrevista com a pergunta crucial do momento: o nome e a foto de Luiz Inácio Lula da Silva estarão na urna eletrônica em outubro? Flávio Dino diz acreditar que sim. E explica: "A situação poderia induzir ao fatalismo, mas, paradoxalmente, aqui a fraqueza vira força". Para ele, as fragilidades já apontadas na sentença da primeira instância, do juiz Sérgio Moro, se tornaram ainda mais frágeis.
E o resultado do julgamento do recurso pelos três desembargadores da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em Porto Alegre só reforçou esse cenário. "Estamos diante de um abuso. Vai ficando evidente. Se olharmos a decisão do TRF4, encontramos abusos na forma e no conteúdo. Do ponto de vista forense, tanto a condenação (por corrupção passiva) e a dosagem (pedido de pena de prisão de 12 anos e um mês) são escandalosos". Segundo Dino, o Judiciário não é monolítico e o debate no Supremo se dará em melhores condições.
Flávio Dino assinala que não teve apoio de Lula e do PT na eleição de 2014, em que derrotou o emedebista Lobão Filho, e lembra que seu partido já lançou a pré-candidatura de Manuela D'Ávila à presidência. Mas refuta qualquer possibilidade de as forças progressistas pensarem em plano B, C, D como alternativa a Lula em outubro. "Quem fala em plano B é porque seu plano A não é Lula", provoca. "Falar em plano B é enfraquecer Lula."
O governador do Maranhão avaliou ainda a disputa política em seu estado e as dificuldades de se governar uma máquina que esteve sob o domínio do grupo político de José Sarney desde os anos 1950. Disse que a aprovação majoritária ao seu governo – constatada em pesquisas – é fruto do fato de a população estar convencida de que se trata de uma gestão diferente na forma e no conteúdo: governar de acordo com as necessidades das maiorias.
Cita os efeitos da crise econômica que assola a arrecadação de todos os estados e menciona feitos como ter entregue e posto para funcionar sete novos hospitais regionais, ampliado de 10 para 40 o número de escolas em tempo integral, de seis para 21 os restaurantes populares. "Achavam que o governo ia fracassar e o nosso governo está muito bem avaliado. Assim, o campo político deles enfraqueceu", disse, ao comentar como supera o bombardeio midiático em seu estado para se apresentar com favoritismo à reeleição.
Apesar das diferenças gritantes entre o quadro regional e cenário nacional, algumas semelhanças podem ser encontradas. "Será eleição plebiscitária. O debate é entre os querem o governo dos 99% e os que querem o governo do 1%", acredita. Em sua estimativa, a população mais pobre, que mais depende do Estado e dos serviços públicos, se identificar os que querem destruir o Estado, irá rechaçar. Assista a seguir a íntegra do Entre Vistas, e na sequência, trechos importantes das conversas com os jornalistas.
jornalistas.
Inquisição
Eu preservo uma "cota ingenuidade" que acho fundamental para todo mundo viver. Por isso o resultado do julgamento (no TRF4) me deixou surpreso.
Trata-se de um retrocesso de 400 anos nas conquistas jurisdicionais. Contraria a construção do processo penal moderno, e volta-se aos métodos da Inquisição, em que o processo tinha como fim condenar o réu, e não elucidar o fato que o teria tornado réu. Não se persegue o fato, se persegue o réu.
Alguns integrantes do Judiciário perderam a noção ao subir no altar da civilização do espetáculo. Isso é uma novidade no Brasil. Juiz homem do ano, capa de revista, gravatinha borboleta, midiatização... Passaram a ser vistas como normais coisas que não são normais em nenhum país civilizado. Manchetes de jornal, informações vazadas de acordo com o horário do jornal, decisões tomadas de acordo com o calendário político. Isso equivale a servir a um joguete do sistema de poder. Juízes não são anjos nem deuses, e sua percepção foi afetada por esse cenário.
Perversidades e recursos
Todo mundo que tem experiência forense sabe que é complexo um julgamento como esse – baseado em indícios, em suspeitas, e em testemunho de um corréu (Leo Pinheiro, dono da OAS) que pode mentir para se proteger. Assim, na decisão por unanimidade por parte dos desembargadores do TRF4, houve um movimento orquestrado com objetivo de aumentar a pena para impedir a prescrição (a data da suposta “infração” cometida pelo ex-presidente remete a 2009 e, com a pena de nove anos e seis meses determinada por Moro, e em função da idade de Lula, superior a 70 anos, a pena seria prescrita).
Há então duas perversidades visando a tentar inviabilizar a defesa: o aumento da pena para fechar o espaço de prescrição; e fechar qualquer possibilidade de recurso a instâncias superiores (no sentido de se impedir a prisão agora e, posteriormente, o registro da candidatura ante uma condenação em segunda instância).
As tentativas de recursos mais prováveis no curto prazo serão o ingresso com pedido de Habeas Corpus tanto no Superior Tribunal de Justiça quanto no Supremo Tribunal Federal, de modo a assegurar o direito de Lula de continuar se defendendo em liberdade.
Judiciário e soberba
Quando Lúcio Costa e Niemeyer projetaram Brasília fizeram a Praça dos Três Poderes. No centro, o Congresso Nacional, edifício mais bonito, majestoso, mais alto. De um lado, o Palácio do Planalto, com uma rampa maior. E de outro lado, um prediozinho, com uma rampa mais baixinha, até porque já tinha o nome de Supremo. Não vai botar uma rampa muito alta porque já é supremo.
A partir dos anos 1990, desde o impeachment do Collor, aquele episódio dos Anões do Orçamento etc., todos nós, e eu me incluo nisto, fomos votando leis, emendas constitucionais, fortalecendo o sistema de Justiça. E a política, por ser a expressão do sufrágio universal, no fundo, odiada pelo capital financeiro, pelos grandes grupos de mídia, pelo núcleo duro da elite brasileira, era achincalhada. Foi-se produzindo um processo em que foi deixando de ser a contenção do sistema de Justiça. E este passou a ser autossuficiente para tudo, para fixar até sua remuneração ao seu poder.
A política deixou de ser o anteparo para esse exercício abusivo do poder por uma série de razões. Para algumas delas a esquerda política tem, em algum momento, de prestar contas para a história. Delações premiadas foram votadas quando? Agosto de 2013, logo após as jornadas de junho. Ninguém sabia o que colocar no lugar em meio àquela crise de governabilidade. Então, alguém disse "delação premiada", contra a corrupção, e votaram como uma espécie de resposta às ruas.
O remédio e o veneno
Na hora que você combina isso com prisões preventivas eternas, vira um coquetel explosivo. O remédio que é bom se toma muito, vira veneno. Na hora que você prende uma pessoa preventivamente por meses a fio até que ela aceite a delação premiada, é claro que você tem uma mistura de instrumentos que conduz a uma série de absurdos. E que você acaba embaraçando coisas legítimas e sérias que foram feitas na Lava Jato com coisas realmente inusitadas como o caso notório do ex-presidente Lula.
Você só consegue resolver isso pela via da requalificação da política. Uma espécie de autocontenção do Judiciário, hoje, é muito difícil, porque uma parte do Judiciário gostou muito desta nova feição. Corresponde a uma dimensão do capital. O juiz não é banqueiro, não é proprietário dos meios de produção, mas acaba agindo assim para aumentar seu capital social, simbólico. Quanto mais poder eu acumular, mais capital social eu tenho. Isso acabou correspondendo a um projeto: a midiatização, a espetacularização, e, com isso, se sentirem diferentes dos demais setores da sociedade.
Sociedade de espetáculo
Voltamos à questão de que nenhuma instituição é boa ou má, dissociada de um contexto da qual a análise é feita. Quando a TV Justiça foi implantada, nós lutamos por ela. Eu estava lá quando a lei foi sancionada. Achei uma grande conquista civilizacional. Ocorre que houve uma apropriação dessa projeção de imagem maior da figura do juiz para, paradoxalmente, suprimir uma parte de sua independência.
O ministro Gilmar Mendes foi achincalhado em um avião por quê? Por seus defeitos que, com certeza, os têm? Não. Naquele caso, foi pelas virtudes. Lembrem das frases que foram ditas: “Soltando bandido”, “dando Habeas Corpus”, “vai já soltar o Lula”. Foi na mesma semana do julgamento do TRF4.
Como agora todo os juízes são conhecidos, o juiz que julga de acordo com uma certa opinião pública ganha prêmio. E o que, eventualmente, vota contra, pode sofrer esse constrangimento. Lembremos o que disse o ministro Lewandowski no julgamento do mensalão.
Criou-se um escrutínio inadequado para o que idealmente se imagina do papel do Judiciário. Se eu não tenho as garantias necessárias para ser contramajoritário, por que serei?
Hoje, não é só a questão da TV Justiça, é a hiperexposição midiática do Judiciário que leva a esse subproduto negativo, à anulação de um dos atributos do Judiciário em uma democracia, que é, inclusive, de se opor às maiorias eventuais, se for o caso. O certo é que nenhum sistema Judiciário do planeta pratica essa forma de exposição midiática que o brasileiro pratica. Nenhuma do mundo. O que pode sugerir duas coisas: que somos geniais ou que estamos errados. Talvez os fatos estejam indicando mais a segunda hipótese.
Casa-Grande & Senzala
Esse julgamento do ex-presidente Lula poderia conduzir a uma impressão de que teremos o acirramento do punitivismo. Mas, nesse caso, a jurisprudência sempre foi seletiva. O punitivismo é de ocasião. Há aqueles que são destinatários do punitivismo desde sempre, que são aqueles que têm um pezinho na senzala. O defeito do Lula é este: é que ele não é da Casa-Grande. Por mais que, eventualmente, talvez, até ele tenha achado que era. Não sei. Ou quem o cercava. Então, o punitivismo é com o povo da senzala. E vai continuar assim, porque essa é a dualidade que está presente nas instituições do Estado.
Não sou afeito às formalidades. Mas note que o Lula é o Lula. O Fernando Henrique é o presidente Fernando Henrique, é outra coisa, porque ele não veio desse lugar, não é alguém que escapou da senzala. Até nos tratamentos, nos pronomes, essas coisas se definem.
Uma das coisas que me impressionou no julgamento foi o nível de ódio presente. Uma coisa mesmo de casta, algo que me chocou. Não havia disfarce. “Nós somos a Casa-Grande e vamos enquadrar todo mundo”. Isso, a meu ver, estava muito visível, lamentavelmente.
Bolsonaro e os jovens
O Bolsonaro é a expressão da crise de representatividade do sistema político, a crise da democracia representativa. É o nosso Hitler, o Mussolini, que eram figuras populares no sentido do apoio. O Bolsonaro é a expressão disso, é o Facebook caminhando. É a caixa de comentários com pernas.
Não é uma caricatura que vai se desmanchar daqui para acolá. É uma caricatura que tem raízes em outras caricaturas, sobretudo da juventude, de que a democracia representativa não serve. É quase uma via de deslegitimação do status quo, paradoxalmente, e de crítica social, contraditoriamente. Bolsonaro é a expressão de uma crítica ao sistema estabelecido. Obviamente ele não é isso, mas uma parte dos que o apoiam imagina assim.
Sem eleição ou semiparlamentarismo?
Não acredito também nessas alternativas de semiparlamentarismo, a não ser que o Lula possa concorrer e ganhar. Mas, nesse quadro, dado o atual momento, acho que eles preferem ganhar a eleição. Por isso, a supressão da eleição não está posta hoje. A grande incógnita é se o povo vai para a rua. Esse é o ponto. Até agora não tem ido. Temos ido nós e nós mesmos, setores mais organizados. E esse é um elemento importante na conjuntura.
É muito difícil imaginarmos que segmentos mais amplos vão para as ruas neste momento. Embora tenha uma dose de imprevisibilidade, nada sugere isso. Por isso, tenho dito que o jogo institucional é essencial, porque não existe nenhuma via insurrecional para colocar no lugar.
Porto Alegre e as provas
É uma construção secular que você tem que ter prova acima de qualquer dúvida, tem que ter juízo de certeza. Aquele conjunto (as acusações e a sentença) é muito frágil. Você tem documentos que poderiam manifestar a intenção de. Mas intenção não é crime. Naquele filme hollywoodiano, Minority Report, a intenção é crime. É um filme profético. No máximo você pode falar: ele cogitou, ele foi lá ver. Sim, foi lá ver, cogitou, pensou, pode até ter pensado em aceitar, quem é que sabe? Mas aquilo não prova que ele aceitou, que ele recebeu, ou que ele solicitou em troca de.
Não é um julgamento moral, sobre se deveria ter feito ou não, se deveria ter ido ou não. Esse é um âmbito de reflexão moral política. O julgamento é da adequação de um fato, ou de um conjunto de fatos, a um tipo penal prescrito na lei. Esse é o julgamento criminal. Você lê o tipo penal de corrupção passiva e não consegue encontrar nos fatos. Lembremos que quando ele foi ver a cozinha, reforma, ele não era funcionário público. Parece só um detalhe, mas não é: porque corrupção passiva só pode ser cometida por funcionário público. Essa é uma das fragilidades mais gritantes do texto.
Mesmo em relação aos atos preparatórios. Você pode resolver matar. Você pode pensar nisso, comentar que está com essa ideia, pode comprar a arma, mas você não é criminoso se não executar.
Olha que já vi casos de corrupção no Judiciário. Pode parecer que não existe, mas existe. Um assessor de um desembargador está vendendo acórdão dentro do gabinete dele. Nunca a ninguém ocorreu, pela teoria do domínio do fato, que o desembargador tem que ser processado. Agora, imagina governando um país. É um pessoal sem noção. Eu me coloco como governador de um estado de 7 milhões de pessoas. Como é que alguém vai saber a minúcia dos atos da licitação do contrato que aconteceu não sei quando nem onde? Só se a pessoa quiser saber mesmo. E você tem que provar que ele sabia, não é imaginar que ele sabia ou punir porque nomeou.
E se a esquerda ganhar em outubro?
Se ganharmos a eleição, não podemos perder a proximidade do povo, o que foi fatal no processo de impeachment. Por isso mesmo, sempre temos que ser muito claros de aonde queremos chegar. Não pode ter ilusão de que sendo bonzinho vão esquecer o que você representa. Você tem que lembrar do território em que está: você está fazendo política institucional e tem, portanto, que travar a luta institucional, segundo seus instrumentos.
Isso se refere, por exemplo, à maioria parlamentar, a manter a chamada governabilidade, enfim. Não dá para fugir disso, a não ser que você não queira jogar esse jogo, que é uma escolha histórica. Todos os partidos progressistas, socialistas, comunistas, do mundo, já tiveram que fazer. A história nossa é travar a luta institucional, então você tem que ser coerente com isso. Mas não pode, em nome da luta institucional, perder o apoio popular. Porque senão você fica refém e cai. Foi exatamente o que aconteceu no processo do impeachment.
Reforma do Judiciário
Não acredito em nenhum tipo de autorreforma. Acredito em novo diálogo em um novo momento, quando a tempestade passar. Acho que ainda será possível reconstruir pactos que incluem que nenhum poder pode ser absoluto. Essa é uma regra liberal, grega, aristotélica. Em algum momento você consegue convencer setores.
Transformar isso em autorreforma não acredito, por isso mesmo é necessário que a política se reencontre, e reencontre inclusive sua funcionalidade. Até isso foi levado pelo processo de impeachment. A partir do local da política, redesenhar o Estado com termos mais razoáveis, aonde não tem usurpação da soberania popular por intermédio do manejo de poderes supostamente técnicos e imparciais.
Haverá guerra civil?
Guerra civil, temos várias no Brasil, simultaneamente, com uma questão de classe muito clara. Mas não vejo nenhum caminho de ruptura institucional no país porque não há caldo de cultura, atores que conduzam a isso. Acredito mais na hipótese de que em algum modo vamos viver sem tédio por mais algum período, mas vamos continuar no jogo da democracia representativa por um longo período. Com essa característica brasileira de sempre estar sujeito a turbulências, a humores diversos ou adversos, por conta da formação social elitista, classista, que o Brasil tem. E para a qual esse experimento chamado democracia representativa com sufrágio universal nunca desceu direito.
Edição: Rede Brasil Atual