A ministra Cármen Lúcia, presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF), em cerimônia de abertura dos trabalhos do Poder Judiciário, nesta sexta-feira (2), apresentou um discurso de três páginas no qual tenta evidenciar o que se espera desse poder no ano de 2018. O discurso logo ganhou as manchetes dos jornais, notadamente por ter dado, na visão destes meios de comunicação, um recado ao PT e ao ex-presidente Lula.
O recado seria o de que “decisão judicial se cumpre” e se respeita. Não há, nas poucas linhas de Cármen, nenhuma frase sobre o justo ou injusto de uma decisão judicial, que, portanto, se tornaria um fim em si mesmo, bastando sua existência para exigir respeito e acatamento. Esse é um primeiro silêncio eloquente no texto. O mesmo discurso caberia perfeitamente na época em que a escravidão e o tráfico de escravos era previsto na lei brasileira. Ou seja, se alguém ousasse discordar de uma decisão judicial que determinava ou mantinha o corpo negro como objeto de posse, receberia a indignação da presidenta Cármen.
Suzana Angélica Paim Figueredo, em brilhante e original dissertação de mestrado apresentada no ano de 2000, na PUC/SP, aprofunda filosoficamente e sob a ótica do direito penal essa questão, ao tratar do famoso caso dos médicos alemães durante o nazismo e do direito à objeção de consciência contra uma lei ou ordem a qual se reputa injusta.
Outro eloquente silêncio de Cármen é o relativo ao sistema penitenciário brasileiro, que hoje apresenta o estarrecedor número de 700 mil pessoas presas em condições que aviltam a dignidade da pessoa humana. Nenhuma frase ou palavra quanto a esse tema ou quanto à relação entre esse vergonhoso quadro e sua relação intrínseca com a absurda decisão da Corte Suprema de desrespeitar a Constituição e possibilitar a prisão antes mesmo do trânsito em julgado da sentença condenatória.
O caos no sistema penitenciário nacional é fruto de decisões desastrosas como essa que o STF tomou ao dar permissão, ainda que contra a Constituição, de tribunais mandarem para a prisão acusados que ainda têm recursos a ser apreciados.
O terceiro silêncio é um subitem do segundo e se refere à cassação do indulto natalino para acusados de crimes patrimoniais cometidos sem violência à pessoa ou grave ameaça. Basta analisar as estatísticas para perceber que esses casos compõem parte considerável do sistema carcerário nacional de um país fundado sob a pedra angular da desigualdade.
O STF suja as mãos de sangue ao, descaradamente, contribuir para o aprofundamento da miséria humana, do cárcere brasileiro, objeto de condenação em série do Brasil na ONU. Mas nada disso é motivo de preocupação da ministra Cármen.
Uma parte do discurso parecia ser destinada aos retrocessos sociais. Vale até mencioná-lo: “que não tenhamos de ser lembrados pelo que não fizemos, ou pior, pelo que desfizemos do conquistado social e constitucionalmente”. No entanto, parou por aí. Já na frase seguinte, Cármen Lúcia retoma a ideia de respeito à República e outras bazófias. Aqui também não poderia deixar de ser silenciada a questão de por que o STF tem sido cúmplice de primeira grandeza das criminosas ações de Temer contra o anteparo social conquistado pela Constituição de 1988 e dos direitos trabalhistas. Já que está na moda o termo organização criminosa, no Tribunal da História, o STF responderia, junto com Temer, por ser parte dessa organização que retira direitos sociais dessas e de outras gerações de milhões de brasileiros.
Ao mesmo tempo em que o discurso da maior autoridade do Judiciário brasileiro é carregado de silêncios, juízes de primeiro grau resolveram se tornar verborrágicos, para o bem do próprio Brasil que agora pode ter dimensão da pequenez desses atores. O juiz Bretas, do Rio de Janeiro, abriu uma conta na rede social twitter e de lá comentava a atacava políticos e a política, posava com fuzil no peito (ao mesmo tempo em que crianças cariocas são vítimas de balas desses mesmos armamentos) entre outras fanfarronices. Quando o jornal Folha de São Paulo revelou que o eloquente magistrado e sua esposa juíza recebiam auxílio moradia, mesmo morando juntos e possuindo imóvel, se desligou do twitter e sumiu. Não resistiu a um mísero dia em que deveria se explicar à população por tais atos.
Na mesma linha, o juiz Sérgio Moro, dono de um imóvel de 250 metros na capital do Paraná, e beneficiário de auxílio moradia. Segundo O Globo, o magistrado se defendeu dizendo que o Judiciário não tem aumento desde 2015. Moro recebeu de salário, em dezembro, R$ 41 mil.
Entre silêncios eloquentes, imoralidades e a verborragia de juízes de primeiro grau, o Poder Judiciário se desnuda ao Brasil como um poder vítima de um completo alheamento aos reais problemas nacionais e dos seus próprios. Retirado o véu da sua pompa e circunstância, este poder mostra ao povo brasileiro que ainda não deixou de ser monárquico, passando longe do que poderia se chamar de uma instituição democrática. Seus dirigentes ou se fazem de cegos ou se acham acima da lei.
Voltando ao discurso, bem a calhar, portanto, utilizar como cordeiro no sacrifício o processo de um líder popular para esconder suas próprias mazelas e contradições. Enquanto se erige como principal problema do Judiciário a crítica a uma injusta decisão que violou direitos de um acusado, se tenta jogar sombras sobre seus reais problemas e urgentes desafios.
Nesse jogo de luzes e sombras, aos poucos o país vai se dando conta de que esses supostos heróis tem os pés de barro e não resistem às suas próprias contradições. Esses deletérios personagens, de algozes se tornaram réus, de acusadores, passaram a acusados. O que não mudou foi a arrogância, o autoritarismo e a prepotência. De fato, não é fácil lidar com tamanha complexidade de papéis.
(*) é advogado e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares
Edição: Vanessa Martina Silva