Em 2006, Álvaro García Linera tornava-se vice-presidente da Bolívia para, ao lado de Evo Morales, buscar transformar aquele país, o mais pobre da América do Sul. Linera se construiu como um dos maiores marxistas do continente e do mundo e se debruça sobre as condições concretas de vida das pessoas e de como é possível mobilizá-las para a transformação social.
Não se trata, portanto, de estudar as categorias do marxismo por si mesmas; nem de exercer o poder político pelo mero exercício, mas de refletir sobre os erros e acertos das esquerdas latino-americanas nestas últimas décadas. O que ocorre no continente para explicar esse avanço conservador? O que fazer? Estas são algumas das respostas que Linera ajuda a desvendar, em uma entrevista realizada na Vice-Presidência da Bolívia cujo alguns trechos você lê abaixo e aqui pode ler na íntegra.
Brasil de Fato: Vice-presidente, pode nos falar um pouco sobre o que se passou aqui na Bolívia nestes 10 anos de governo indígena-camponês-popular?
Álvaro García Linera: A Bolívia tem atravessado um processo revolucionário que mudou sua estrutura social, sua estrutura estatal e a organização econômica da sociedade. De uma maneira tal que, em muitos aspectos, a Bolívia contemporânea é muito diferente da Bolívia que conhecíamos décadas atrás. Hoje, os índios governam a Bolívia. Não o fazem sozinhos, fazem-no articulando outros setores sociais, mas construíram um poder.
A indianitud deixou de ser um elemento de desvaloração para transformar-se em um elemento de valoração social. Em termos sociológicos, o capital étnico, ou seja, a cor da pele, o sobrenome, as roupas, o idioma foram enfraquecidos como mecanismo de enclassamento social. Quem sabe este tenha sido o feito mais importante da sociedade boliviana, esta modificação de ordem simbólica.
Em seus escritos, o senhor sempre faz referência à indianização do estado boliviano. Gostaria que falasse um pouco sobre isso. Há quem diga que a Constituição da Colômbia, de 1991, é um prenúncio da boliviana porque há previsão de direitos indígenas.
As constituições latino-americanas, como a colombiana, são uma derivação do multiculturalismo, que é o reconhecimento dos povos indígenas enquanto minorias protegidas pelo Estado, estando este sob condução de outros setores sociais diferentes aos indígenas. É o que ocorreu na maior parte dos países da América Latina. O que houve na Bolívia foi um movimento duplo. O reconhecimento dos direitos dos povos indígenas como nações, com estrutura identitária e histórica própria, com direito a exercer o seu idioma, os seus sistemas educativos, suas narrativas e instituições próprias.
E segundo: em nossa experiência, o sujeito que reconhece o direito dos povos indígenas é um sujeito indígena. Em outros casos, os sujeitos reconhecidos são os indígenas e o sujeito que reconhece são os não-indígenas, como maioria. E aqui isso se inverte. Isso é a indianização do Estado. Como se traduz? Os indígenas se transformam em sujeito decisório das políticas públicas do país: definição de investimentos, de horizontes, de projetos. Tomada de decisões fundamentais do Estado e do governo passam por esse sujeito indígena originário campesino.
Há também vários de seus escritos, principalmente os da década passada, em que o senhor fala sobre o encontro entre o indianismo e a classe, o marxismo e o indianismo.
A grande virtude do indianismo foi que deu visibilidade, como nunca antes, ao fato de que a organização da sociedade fundada em identidades étnicas – cor da pele, sobrenomes, vestimenta – era o fundamento da conquista colonial e que atravessava todo o ordenamento da sociedade boliviana. Isso significava que não havia classe no sentido econômico do termo? Não, claro que havia, mas o mais interessante é que isso possuía um tipo de isomorfismo. Se você sabia a cor da pele de uma pessoa, sabia qual era o seu ofício. Com um agravante: que podia procurar ter outra profissão, mas se a sua cor de pele, sobrenome ou idioma lhe denunciasse, seu esforço por enquadrar-se economicamente falhava, porque continuava a ser um índio.
Isto quer dizer que a divisão da sociedade por trabalho, por propriedade, era similar à divisão da sociedade por identidades étnicas, com o agravante de que era a identidade étnica que dirigia o trabalho. Sua possibilidade de ascender socialmente não dependia fundamentalmente de seu trabalho, dependia da sua etnicidade, dependia de sua branquitude social. E vice e versa: eras pobre e não tinha trabalho, nem propriedade, mas se tivesse a branquitude social, isso lhe permitia um ascenso.
Isso o marxismo não podia entender, pois o marxismo se pôs a estudar a divisão das classes sociais por ofícios e por propriedade. O marxismo tinha uma vontade de poder, mas como não conseguia realmente entender a estrutura real de classes, não tinha capacidade de mobilização ou de compreensão. O indianismo tinha capacidade de mobilização - não de mobilização social -, mas de despertar ético-moral da sociedade, mas não tinha vontade de poder, porque tudo era apenas uma denúncia.
A forma que eu encontrei de articulação é: a etnicidade é um capital a mais, é um bem monopolizável que permite que você ascenda ou descenda socialmente, como pode ser o salário, como podem ser os vínculos sociais, como pode ser a propriedade. Então, na abordagem marxista, temos que as classes sociais se constituem, e, de fato, a etnicidade é uma forma de enclassamento social, é uma forma de construção histórica das classes sociais, que convém trabalhar em sua particularidade.
Tem que estar atento a qual é a identidade que lhe permite adicionar um vínculo coletivo frente a um adversário, e a identidade que serviu, no caso da Bolívia, porque estava ali, foi a identidade étnica. O marxismo na Bolívia, de alguma maneira, enriqueceu-se com o indianismo. Aqui se deu “alma local”, territorialidade, raiz, e segue funcionando.
O esquema marxista das classes sociais funciona, mas não é entendida como: ‘temos aqui a classe operária. Vamos ver quem são e os coloco numa caixa. Quem é a pequena burguesia? E os coloco em uma caixa’. Deve-se ir pelo caminho reverso. Deve-se analisar como se constituem as classes sociais hoje, para então dizer: ‘esses são os sujeitos’.
Terás invertido a ordem do procedimento para falar sobre as classes sociais. O que temos que ver é como são construídas as classificações, onde está o efeito eficiente das classificações, qual a base para a distinção, em torno de que princípios se diferenciam na prática, antes de dizer que se tem que diferenciar pelos papéis desempenhados na produção.
É possível que isso não seja o decisivo. Veja primeiro como as pessoas estão lutando e, em função de como lutam, por bens, por discursos, por propriedades, por salários, por identidades, então podemos identificar as classes sociais, emergentes dessas lutas de classes.
Em 2012, o senhor escreveu um livro chamado Tensiones Creativas de la Revolución. Quais seriam as tensões de hoje, com a mudança de correlação de forças no continente? Existem novos cenários?
O primeiro tema [deste livro] era Democracia x Estado ou Movimentos sociais x Estado. Isso foi abordado por Lênin, do seu modo. Estado é monopólio. Movimentos sociais é democracia. Agora, temos que optar, por qual? Se optas pela democracia, perfeito, maior participação, mas perdes a centralização de poder frente aos seus adversários. Se optares por maior poder, perfeito, terás como se defender, mas não vai se diferenciar em nada de um Estado capitalista, porque terás perdido o fundamento de qualquer revolução social: o democrático, o participativo. É uma contradição. Não há solução.
questão da revolução é que tens que viver a contradição, assumir a contradição. Em uns momentos aumento um pouco mais aqui, em outros um pouco mais ali, mas nunca poderás perder nenhum dos dois, ad infinitum. Não é um ou outro. São os dois. Mas é uma contradição? Sim. O futuro é uma contradição viva.
O segundo tema é [privilegiar] “sua base social ou irradiar-se”? O problema da Dilma [Rousseff]. Irradio-me para manter a hegemonia e incorporo aos outros, porque se não incorporas aos outros, eles vão te golpear. Mas até que ponto e como os incorpora? Se incorporar demais, te engolem. Se os incorpora como bloco, unificados, vão te destruir, porque nunca vão estar satisfeitos com você. Suportam-te, sorriem-te, porque tens o poder, mas no momento em que tiver uma fissura no poder, vão abri-la até te destruir, como aconteceu no Brasil.
Mas se te restringes ao teu núcleo duro também perdes em termos de hegemonia, e então permites que outras forças articulem quem você não articulou, e te asfixiam. Então, qual é a saída? Jogar com os dois. Em alguns momentos me expando, em outros me retraio. Podes expandir quando tens maior capacidade econômica redistributiva.
Mas quando os recursos se tornam escassos, tens que se retrair e se apegar ao teu único núcleo que será o que vai te defender. Empresários e classe média nunca sairão às ruas para defender índios e trabalhadores. Quando tens que dividir o pouco, por quem deves optar? Pelos teus. Essa é nossa experiência. E quando viola esta regra, perde tua base. Quando tens pouco e opta pelos outros, que não pelos teus, perdes tua base e os que supostamente iriam te apoiar, não o farão. Vão ver que perdeste tua base e vão te esmagar. É como uma regra.
A terceira tensão era a questão social e o meio ambiente. Se somente proteges a “Mãe Terra”, que é tua base indígena, perfeito, mas se não tens como alimentar o povo, como construir um colégio, ou garantir a saúde, essas pessoas irão “cair em cima” de ti e reclamar onde está sua escola e seu hospital, e vai votar por quem promete a escola, o hospital, a rodovia ou um salário melhor. Mas, se somente se dedicas a isto, deixando de lado políticas de proteção do meio ambiente, então simplesmente estás assumindo um caminho no sentido de um Estado de bem-estar, desenvolvimentista, extrativista, já terás abandonado esta meta comunitário-comunista, esta nova forma de encontro metabólico entre natureza e ser humano. Então, em meus textos, digo-lhes que há sempre que caminhar com os dois.
Em qualquer transformação revolucionária, tens que usar todos os meios socialmente disponíveis para preservar o poder, e a chave para preservar o poder com os meios disponíveis é a tua estabilidade e o teu bem-estar econômico. Se conseguires gerar um bem-estar econômico, socialmente aceitável para a população, isto vai te permitir manter um controle do poder estatal, o que vai te permitir ganhar tempo, que é o que necessitamos para promover no interior da sociedade maior participação democrática, que vá superando o papel do Estado na gestão da economia.
Tempo, à espera que outro país irmão, o Brasil, a Argentina, o Peru ou o Uruguai, leve adiante suas próprias transformações que te permitam acoplar-se com os processos de outros países do mundo, porque tu, sozinho, não poderás construir um átomo de comunismo, estás asfixiado. Mas, por sua vez, também precisa do poder, para que este tempo ganho e estes recursos obtidos gerem bem-estar e melhores condições. E como ganhas tempo? Melhora a economia. Se quer melhorar a economia, mantenha o poder e, logo, ganhará tempo e, assim por diante. É como um ciclo que se retroalimenta. O grande problema de nossos processos, em muitas partes da América Latina, é que não se consegues alinhar bem estas três variáveis: tempo, economia e poder.
No momento atual, com a economia tão globalizada, pensas que é o mesmo? Porque com as crises estruturais do capital nós sempre esbarramos nesta questão da economia...
Com mais razão. Essa globalização te exige que, se não tens o apoio dos outros, estás condenado ao fracasso.
Sim, mas hoje, toda a América Latina está na mesma situação. O que pensas?
Conseguimos romper com isso. Em plena globalização, Brasil, Venezuela, Bolívia, Equador, começamos a articular uns com os outros. O que foi feito aqui está começando a ser debatido na Europa. A América Latina se adiantou em 10 anos em relação ao mundo. As coisas que o Lula começou a fazer, esta economia que mesclava uma globalização seletiva (para essas coisas me globalizo, para essas coisas me concentro no mercado interno), [Jeremy] Corbyn está discutindo na Inglaterra, o Podemos na Espanha, [Jean-Luc] Mélenchon na França. O horizonte único, que Reagan e Thatcher nos deixaram, ruiu. Porém, o mundo só começou a debater isso quando entramos em retrocesso aqui. Os conservadores começam a ressuscitar o que havia ocorrido há 20 anos. Uma espécie de assintonia com o processo planetário.
O senhor fala em seus livros que a revolução é feita por ondas sucessivas. Na Bolívia, a taxa de redução da pobreza que, em 2016, de acordo com o informe presidencial de Evo, foi menor que nos anos anteriores; ocorreu também um aumento do abandono escolar, relacionado com a questão do trabalho. Houve a derrota do bloco indígena campesino popular no referendo de fevereiro de 2016. Será que o modelo de controle dos excedentes e de redistribuição a partir do Estado não necessita de novos processos democratizantes? Não somente o controle e redistribuição de excedentes, mas enfrentar a questão do trabalho associado, a esfera da produção, da economia comunitária...
Existe aí um duplo problema. Uma autocrítica que nós devemos fazer é que esses processos de distribuição social da riqueza sempre têm de vir acompanhados de democratização social ou de ideologia. Porque, quando há distribuição da riqueza sem democratização social, aparece como uma coisa verticalmente feita ‘pelos de cima’. Então, isso te conduz a uma posição passiva. Não é a sua luta, não é o fruto de sua associação organizativa, é o fruto de sua espera, pelo líder, pelo presidente, pela pessoa que lhe protege. É uma forma real de despolitizar.
Todo processo tem que vir acompanhado de democratização, de formas de participação, de formas de deliberação local, regional, segmental, organizativa, corporativa e que estas conquistas sejam vistas como suas conquistas. Por outro lado, devemos compreender que a sociedade tem também ondas sucessivas: o momento da individualidade, o momento do corporativismo e o momento do universalismo. Aqui [com gestos, referindo-se ao momento da individualidade], penso em mim mesmo.
Aqui [momento do corporativismo], penso em meus companheiros. Aqui [momento do universalismo], penso em todos, mas isso não dura. As pessoas estiveram contigo, marcharam, lutaram, foram baleadas, perseguidas, torturadas, mas logo têm que ir para casa. “Que vai ser de minha filha quando for estudar? Tenho que pagar a dívida da casa”. A retirada corporativa é como uma espécie de lei da ação coletiva e é o que tem passado na maior parte do continente. Por que isso ocorre? Porque as pessoas não podem se manter perpetuamente mobilizadas. Eu estava revisando os textos dos bolcheviques, que mostram que os sovietes no ano 1908 já quase não existiam. Os sovietes cheios de soldados, de obreiros, de jovens, de senhoritas, de servidores, de engraxates, e as pessoas logo desaparecem! As pessoas entram em um processo de retirada familiar, retirada pessoal e podem passar 1, 5, 20 anos até que haja uma nova oleada.
Na América Latina há uma espécie de assintonia novamente. Alguns processos progressistas distribuíram riqueza sem democratização social e vivenciam um novo momento de refluxo, em que normalmente as pessoas se despolitizam. Uma maior democratização teria permitido pelo menos manter grupos corporativos, de democracia interna, de bairros, de zona, de fábrica. Quando não tens a democratização, a caída do momento universal é para o individualismo. Isso te coloca em condições mais adversas.
Sobre o individualismo, quem tem os melhores discursos é a direita, porque ela apela ao esforço individual, ao empreendedorismo, à iniciativa, à competitividade. Daí, é no Estado que buscamos os mecanismos de influência para buscar ‘re-ideologizar’ e novamente gerar mecanismo de articulação coletiva. É um pouco o que faz o Lula, a seu modo, com sua experiência sindical: ir outra vez ao coletivo, à assembleia. É a paixão da associatividade, a que desperta o Lula, porque sabe que sem isso está perdido.
Qualquer processo de transformação sem isso está perdido. A direita trabalha um lado que está permanentemente presente nas pessoas: sua individualidade. Agora, tu trabalhas sobre coisas que excepcionalmente estão nas pessoas: o coletivo. Por isso, as revoluções não são tão fáceis. São excepcionalidades históricas. Porque, senão, estaria havendo uma revolução a cada seis meses no mundo, não é?
A entrevista foi realizada em 11 de setembro de 2017, no gabinete da Vice-presidência do Estado Plurinacional de Bolívia, por Daniel Araújo Valença, professor do curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), e Ilana Lemos de Paiva, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Leia a íntegra em http://www.culturasjuridicas.uff.br/index.php/rcj/article/view/437.
*colaboração para o Brasil de Fato
Edição: Nina Fideles