Um grupo político autodenominado “Direita São Paulo” organizou para esse sábado (10/02), um bloco de carnaval intitulado como “Porão do DOPS”- “o maior bloco anticomunista do Brasil”. Repleto de jovens autodeclarados da direita paulistana, o referido bloco tinha como principal mote a reivindicação à ditadura civil-militar, assim como a saudação apologética de notórios carrascos torturadores do regime de exceção, entre os quais estão o ex-coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e o ex-delegado do DOPS-SP, Sérgio Paranhos Fleury. Após a publicização deste bloco via redes sociais e a alarmante quantidade de pessoas que confirmaram presença, o Ministério Público de São Paulo ingressou uma ação civil pública contra a organização do bloco, com o objetivo de impedir qualquer enaltecimento a tortura e os torturadores. Após a liberação do bloco em primeira instância, o Tribunal de Justiça de São Paulo definiu a proibição do “Porão do DOPS” nas ruas durante o carnaval.
O referido fato nos suscita amplas questões reverberadas entre a história e memória do passado sob o presente. Passados 33 anos do fim da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), a organização de um bloco carnavalesco como o famigerado “Porão do DOPS”, representa um verdadeiro acinte ao dito “Estado democrático de direito” já fragilizado no Brasil, ou a qualquer modelo político que em sua natureza repudie o regime de exceção que perdurou durante 21 anos na história do Brasil. Após o golpe de 1964, experimentamos uma ditadura classista e militar, sustentada por uma coalização entre a burguesia nacional associada ao capital externo e as Forças Armadas, e caracterizada pela centralização do poder político e o cerceamento das liberdades civis, políticas e democráticas.
Para a consolidação desta ditadura foi empregado o uso indiscriminado da repressão na sociedade brasileira enquanto um mecanismo essencial e sistemático do Terrorismo de Estado. Desse modo, contra qualquer oposição política ao regime ditatorial foi instaurado um conjunto de violências físicas, psíquicas, típicas da tortura generalizada que visavam violar a dignidade dos torturados e os perseguidos políticos da ditadura civilmilitar. Em contradita a falácia dos militares e seus adeptos (como o grupo “Direita São Paulo”), de que durante o referido período houve apenas certos excessos e desvios de alguns agentes, não podemos desvencilhar a ditadura civil-militar do seu cerne fundante, qual seja, a de garantir a dominação burguesa por meio de um sistema de repressão institucionalizada pelo Estado. Nesse sentido, desde a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), a Lei de Segurança Nacional (1967) e os decretos dos Atos Institucionais, especialmente o AI-5 (1968), a repressão, amplamente utilizada, foi instituída e estruturada enquanto política de estado desde o princípio da ditadura em 64, até o seu fim em 1985.
Como parte do engenhoso aparato repressivo, a ditadura se utilizou do DOPSDepartamento de Ordem Política e Social, criado desde 1924, e recrudescido a partir de 1964. O objetivo deste aparelho era fiscalizar, censurar e reprimir os movimentos de oposição ao regime, assim como os militantes de esquerda no Brasil. O porão do DOPS, que hoje é reverenciado pelos grupos fascistas como o “Direita São Paulo”, foi o mesmo lócus de perpetração de um conjunto de horrores durante o período civil-militar. Choques elétricos, “pau-de-arara”, “cadeira do dragão” e os demais variados tipos de sevícias e crueldades foram largamente aplicados pelos inúmeros agentes repressivos que compunham o DOPS, e que foram responsáveis pelo massacre de milhares de pessoas perseguidas, sequestradas, barbaramente torturadas, mortas e “desaparecidas”.
Como qualquer espécie de porão, o “Porão do DOPS” também teve seus “ratos”. Entre os quais, destacamos os agentes repressivos desde os policiais-investigadores, escrivães, médicos-legistas, os carrascos torturadores e os delegados. Destes, cabe salientarmos o papel odioso executado pelo “rato” torturador Sérgio Paranhos Fleury, exdelegado do DOPS de São Paulo, marcado por uma vida dolosa repleta de crimes cometidos como tráfico de drogas, corrupção, improbidade administrativa, chefia do “esquadrão da morte” e a adoção sistemática da tortura e assassinato aos militantes de esquerda do período, a exemplos de sua participação nas mortes de Carlos Marighela em São Paulo, assim como na caçada a Carlos Lamarca em Brotas de Macaúbas-Bahia.
Tão truculento quanto Fleury, Carlos Alberto Brilhante Ustra foi um ex-coronel do II Exército (1970-1974), condenado em 2008 em ação declaratória por sequestro e tortura durante a ditadura, e reconhecido publicamente em 1986 pela atriz e militante política Bete Mendes, como o algoz das torturas sofridas pela mesma, assim como outros tantos casos repressivos oficializados ao longo do pós-ditadura. São estes nomes que atualmente estão sendo tratados como perfis “ilustres”, saudados e homenageados enquanto portaestandarte do bloco carnavalesco “Porão do DOPS”.
No presente, apesar de alguns desses “ratos” como Fleury e Ustra terem falecidos sem ao menos serem responsabilizados pelos seus crimes cometidos, o “ovo da serpente” da ditadura chocou e ainda tem gerado os seus filhotes a exemplo do grupo fascista “Direita São Paulo”, que reivindica o modus operandi do fascismo perpetrado pelo regime, que agora se reflete no resgate de uma memória em louvor ao referido regime terrorista de exceção. Esses “filhotes da ditadura” estão proliferando e disputando cada vez mais os espaços sociais como as escolas, universidades, locais de trabalho e cenários políticos, impondo seus torpes pensamentos e práticas coletivas constituídas pela intolerância e o ódio anticomunista.
Passado o período da ditadura civil-militar, o bloco “Porão do DOPS” traz a voga alguns significados para a nossa contemporaneidade. A organização e a defesa deste bloco por um grupo direitista, apoiado por seus seguidores proto fascistas, se constitui como um fato sintomático à frágil ou quase inexistente justiça de transição no Brasil após o fim do regime de exceção. Desde o seu processo de distensão ao longo dos anos 80, o fim da ditadura ficou caracterizada pela negociação consentida, mediada e executada pelos próprios militares no poder.
Como prova, a Lei de Anistia (1979) ao isentar os militares e civis apoiadores dos crimes cometidos contra os direitos humanos, escancara o processo de impunidade e a saída protegida que os ditadores tiveram após a ditadura. Ademais, o período de “abertura” permitiu a não judicialização dos torturadores e colaboradores dessa prática odiosa.
Por conseguinte, tivemos uma lacuna na memória coletiva sobre o período, que hoje se manifesta nas manipulações sobre a verdade histórica a respeito das atrocidades do regime. Não à toa, grupos como o “Direita São Paulo” propagam distorções que chegam ao cúmulo de negar a existência do sistema ditatorial, assim como a realização da repressão sistemática. Também, adotam para si sujeitos como Bolsonaro, que igualmente a Ustra, Fleury e tantos outros sustentáculos da ditadura, é reconhecido na história como inimigo da classe trabalhadora e do povo brasileiro.
Por sua vez, os grupos de direita visam de maneira cada vez mais acirrada expandir a intolerância, o terror e o ódio, buscando-se respaldar na “liberdade de expressão”. Não obstante, os mesmos não querem tal liberdade, mas sim um salvo-conduto para poderem propalar seus discursos e ações de repressão voltados especialmente às minorias da sociedade. Diante desta ofensiva fascista, o denominado “Estado democrático de direito” deve se posicionar.
Assim, o mesmo Estado que em 1995 reconheceu os crimes cometidos pela ditadura através da “Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos”, e que a partir de 2011, mediante a “Comissão Nacional da Verdade”, oficializou a existência dos crimes de tortura e perseguição política, tal qual os seus perpetradores como Carlos Ustra, Sérgio Fleury, dentre outros, deve portanto, coibir à força da lei quaisquer tipos de manifestação de intolerância e do ódio fascista, destilados em discursos, ações e eventos como o bloco “Porão do DOPS”, que notoriamente exerce uma apologia das práticas de tortura e seus executores. Conforme o artigo 287 do Decreto de Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940, constitui-se crime “fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime”. Logo, impedir a realização do bloco carnavalesco “Porão do DOPS” foi o mínimo que o Estado deveria assegurar.
Vivemos em um período que a tomada de posição é cada vez mais imperante. Para nós pesquisadores da história da ditadura civil-militar, assumir a trincheira da pesquisa sobre o período é imprescindível para a consolidação da luta pelo direito à memória, verdade e uma verdadeira justiça de transição no Brasil. Nessa perspectiva, a luta antifascista se fará também às margens do Estado e seus dispositivos normativos.
Assim, o caso de resistência que envolveu a agressão ao membro fascista do grupo “Direita São Paulo” e organizador do “Porão do DOPS”, consistiu em uma ação revolucionária legítima, no qual, como frisou Malcom X, não podemos sob hipótese alguma “confundir a reação do oprimido com a violência do opressor”. Portanto, em tempos que ovacionar torturadores como Ustra e Fleury tem sido cada vez mais frequente, recorrer à história é um passo sine qua non para que tais torturadores e seus crimes hediondos sejam repudiados e combatidos, para que não se esqueça, não se perdoe, e nunca mais aconteça!
* Taylan Santana Santos é historiador, mestrando em História (UNEB), pesquisador da história da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985).
Edição: Luiz Felipe Albuquerque