CONSULTA

Análise | Equador: enterro do passado ou desafio para o futuro?

Referendo do dia 4 de fevereiro consolidou a ruptura do governo de Moreno com o de seu antecessor, Rafael Correa

|
Enquanto a ala da Aliança País apoiadora de Correa fizeram campanha pelo "não", setores anticorreistas do país votaram a favor do "sim"
Enquanto a ala da Aliança País apoiadora de Correa fizeram campanha pelo "não", setores anticorreistas do país votaram a favor do "sim" - Presidência da República do Equador

Depois de uma década de Revolução Cidadã, a conjuntura atual do Equador é absolutamente diferente. Em oito meses de governo, o presidente Lenin Moreno – que iniciou o mandato no dia 24 de maio de 2017 – marcou não apenas algumas diferenças em relação ao governo de seu antecessor, Rafael Correa, mas sim uma ruptura total.

No entanto, tanto o presidente Moreno como vários de seus ministros e altos funcionários de Estado são filhos políticos da Revolução Cidadã de Correa e, entre eles, existiram defensores apaixonados do "correísmo". Com a mudança da conjuntura, essas pessoas agora se identificam com os novos rumos do país, que justificam como necessários.

O auge desse processo de ruptura, que se deu com a consulta popular convocada por Moreno, realizada no último dia 4 de fevereiro, gerou uma convergência de forças sociais inédita na história recente do país. A consulta foi apoiada pela velha esquerda, pela centro-esquerda, por marxistas ortodoxos, bem como por dirigentes de movimentos populares, pelo movimento indígena, centrais sindicais e diversos setores pró-bancos, por setores profissionais e da sociedade civil.

Além disso, o ineditismo consiste no fato de que importantes figuras políticas do passado, os mais influentes meios de comunicação privados e públicos, os diversos partidos da direita política, federações da indústria e as elites econômicas nacionais comemoraram e parabenizaram o novo governo por aquilo que consideram uma mudança no ambiente político de "democracia e liberdade".

Todas essas forças sociais e políticas que defenderam a consulta popular (alguns membros dessas forças inclusive se autointitularam pais da proposta) e fizeram propaganda pelo "7 vezes sim", são as mesmas que clamaram pela "descorreização"do Estado e da sociedade e amplificaram a corrupção do governo anterior.

Sem dúvida, ninguém pode aceitar a corrupção, um fenômeno de ampla vigência na história equatoriana, e é preciso deixar nítida a necessidade de julgá-la e combatê-la através da lei e da institucionalidade; mas qualquer pesquisador objetivo também tem a clareza de que existem interesses para amplificar midiaticamente a corrupção no Estado referindo-se exclusivamente à do governo anterior, sem dizer nada sobre a corrupção privada nem sobre os corruptores que movimentam propinas, pressões, vantagens ou decisões de funcionários a seu favor.

Essas corrupções privadas têm amplitudes sem precedentes e continuam impunes, como é o caso da "sucretização"[1] das dívidas empresariais em 1983 e 1987, que causou um prejuízo ao 4.462 milhões de dólares ao país; ou as sucessivas crises, a quebra parcial com congelamento de recursos, o fechamento e o salvamento de bancos entre 1999 e 2000, que custou ao país 6.170 milhões de dólares, além da ruína social que acarretou, pelo desespero de milhares de cidadãos que perderam suas economias, da morte de pessoas, da queda nas condições de vida e uma vertiginosa emigração.

Quase não se diz nada sobre a evasão de impostos de 215 grupos econômicos que devem 2260 milhões de dólares aos cofres públicos, assim como tampouco se fala sobre as evasões nas alfândegas, nem sobre o dinheiro enviado aos paraísos fiscais, que correspondem a pelo menos 30.634 milhões de dólares, segundo os dados oficiais do Serviço de Rendas Internas (SRI).

Por outro lado, os especialistas em História da América Latina têm a compreensão de que existe uma estratégia internacional imperialista unificada de golpe brando, lawfare (guerra judicial) e judicialização da política, com perseguições contra os governantes e funcionários dos governos progressistas da região, como aconteceu na Argentina e no Brasil, e se questionam se não aconteceu o mesmo no Equador.

Em todo o caso, com semelhante confluência de forças sociais e políticas, é preciso assumir que o governo do presidente Lenin Moreno tem a oportunidade histórica mais invejável para realizar mudanças no país que deveriam demonstrar, no futuro, que as realizações da Revolução Cidadã reconhecidas por entidades distantes das paixões equatorianas, como a CEPAL e, inclusive, o FMI, o Banco Mundial e o PNUD, foram superadas.

Além disso, todos que apoiaram a consulta popular esperam que a nação comece a funcionar, deixando para trás a década “correísta”. Câmaras e empresários, assim como economistas interessados adiantaram o programa econômico que o governo deve executar como política de Estado, sem questionar se tais projetos violam o que diz a Constituição de 2008 em relação ao modelo que o país deve seguir.

Estamos diante de um momento histórico desafiante para a construção de uma economia que permita voltar aos princípios constitucionais, para que o caminho da equidade seja retomado, com a redistribuição da riqueza, a diminuição da pobreza, a superação da miséria, a conquista da previdência universal, a provisão de obras públicas, sobretudo, de serviços públicos cada vez mais amplos nas áreas de educação, saúde, atenção médica, com aposentadorias dignas, moradias populares e trabalho com condições dignas, graças às novas medidas anunciadas.

Lenin Moreno recebeu, finalmente, neo último dia 4, o apoio popular nas urnas, resultado do trabalho que o governo e todas as forças nacionais citadas anteriormente trabalharam para conseguir (com exceção da fração "correísta" da Aliança País/Revolução Cidadã que trabalhou pelo Não).

Esta manifestação a favor do "7 vezes Sim" também revelou a voracidade de todos os grupos políticos e econômicos unidos pelo anticorreísmo, que agora buscarão negociar ou impor sua própria agenda, a qualquer preço, ao governo do presidente Moreno. Quem sairá vitorioso nessa luta? O governo vai poder seguir por um "caminho independente"?

Portanto, nos resta esperar para ver se serão cumpridas a institucionalidade que reivindicam as forças vencedoras, se as novas cifras econômicas, a partir de outro modelo de crescimento baseado no setor privado - o que também foi oferecido -, e as novas mudanças sociais. Veremos como virão esses abocanhamentos políticos para fazer prevalecer uns interesses sobre os outros, umas agendas sobre as outras.

Edição: Simone Freire | Tradução: Luiza Mançano