Em um interrogatório extenso, três testemunhas de acusação arroladas pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública foram ouvidas hoje (27) em júri popular que acontece no Fórum de Osasco. Durante o depoimento, elas falaram que uma testemunha chave, apelidada de “testemunha Beta”, apontou a participação do policial militar Victor Cristilder Silva dos Santos nas chacinas de Osasco e de Barueri, ocorridas em agosto de 2015.
O policial Cristilder, como é mais conhecido, é acusado de ter trocado mensagens de celular com um guarda municipal para combinar sobre os horários da chacina. Além disso, ele teria dirigido um dos carros utilizados e efetuado disparos contra as vítimas. Ele é acusado por oito mortes e também por tentativa de homicídio.
No primeiro julgamento do caso, os sete jurados decidiram condenar os PMs Fabrício Emmanuel Eleutério e Thiago Barbosa Henklain, além do guarda-civil Sérgio Manhanhã. Fabrício Eleutério foi condenado a 255 anos, 7 meses e 10 dias de prisão e Thiago Henklain recebeu sentença de 247 anos, 7 meses e 10 dias. O guarda-civil Sérgio Manhanhã foi condenado a 100 anos e 10 meses.
Os dois policiais foram acusados de terem disparado contra as vítimas e respondiam por todas as mortes e tentativas de assassinato. Já o guarda-civil, segundo a acusação, teria atuado para desviar as viaturas dos locais onde os crimes ocorreriam e foi denunciado por 11 mortes. Eles responderam pelos crimes de formação de quadrilha e homicídio qualificado por motivo torpe, praticado por grupo de extermínio.
As mortes, segundo a acusação do Ministério Público, teriam ocorrido como forma de vingança pela morte de um PM e de um guarda-civil naquele mesmo mês. Segundo a acusação, os acusados se reuniram e decidiram fazer uma chacina “sem se preocupar com o fato de que as pessoas a serem eventualmente atingidas fossem completamente alheias aos motivos determinantes do crime”.
Depoimentos
O primeiro a falar foi o delegado Andreas Schiffmann, que iniciou as investigações sobre a chacina em Barueri. Em seu depoimento, de quase uma hora e meia, ele falou que a investigação contra Cristilder teve como base o depoimento da “testemunha Beta”, que foi arrolada no júri popular, mas que, assim como outras duas testemunhas, não foi localizada e não será ouvida nesta oportunidade. No total, 20 pessoas serão ouvidas como testemunhas de defesa e de acusação nesta primeira etapa do júri, previsto inicialmente para terminar na próxima sexta-feira (2).
A “testemunha Beta” é um sobrevivente de uma chacina ocorrida dias antes em Carapicuíba, apontada como a “pré-chacina de Osasco”, no dia 8 de agosto. Ela estava com o amigo Michel em uma rua da cidade quando foi abordada por Cristilder, que disparou e matou Michel. Dias depois, essa testemunha reconheceu o carro utilizado por Cristilder na chacina de Carapicuíba como sendo o mesmo que foi utilizado na chacina de Osasco e de Barueri, no dia 13 de agosto de 2015.
Em depoimento durante a investigação, a testemunha apontou Boy, apelido de Cristilder, como um dos participantes dos crimes. A defesa de Cristilder, no entanto, tenta desacreditar o depoimento afirmando que Boy é também o apelido de outro policial, Rodrigo Rodrigues, parecido fisicamente com Cristilder e ressaltando que a “testemunha Beta”mentiu diversas vezes em depoimento, apontando carros e endereços que não seriam de Cristilder.
No depoimento de hoje, o delegado disse que logo suspeitou da participação de policiais na chacina porque, nas imagens de câmeras de segurança que registraram alguns dos flagrantes da chacina [oito locais foram alvo de ataques nas chacinas de Barueri e Osasco], os criminosos apresentavam comportamento típico de policial, aprendido em curso. “Vi que eles usaram técnicas policiais na abordagem”, disse Andreas Schiffmann, citando, entre as técnicas, o fato de que uma pessoa sempre era deixada no volante enquanto as demais saíam do carro para cometer os crimes e o fato de que os criminosos não mantiveram o dedo no gatilho.
“Eles só colocaram o dedo no gatilho na hora de atirar”, ressaltou o delegado, lembrando que isso é aprendido em um curso policial. Além disso, falou, a impressão que teve pelas imagens era que todos usavam coletes a prova de balas e luvas cirúrgicas, para dificultar a investigação. Houve também, destacou, uma denúncia anônima falando que os crimes foram provocados por policiais. As mortes, segundo ele, foram provocadas pelo “sentimento de vingança” pela morte de um policial militar e de um guarda civil na mesma semana.
Schiffmann também disse que acredita na culpa de Cristilder porque, durante a apreensão do celular do réu, a investigação encontrou mensagens trocadas entre ele e Sérgio Manhanhã, que foi condenado no julgamento anterior por participação nas mortes. “Havia sinal de positivo perto do início do horário em que teve início as chacinas e outro sinal de positivo no horário em que as mortes teriam acabado”, falou ele.
Durante o depoimento, o delegado foi acusado pela defesa de Cristilder de ter coagido duas testemunhas, uma delas, a “testemunha Gama”, principal testemunha da acusação contra o policial Thiago Henklain, que foi condenado pela chacina. O advogado apresentou um vídeo em que a essa testemunha disse ter sido coagida pelo delegado e pelo promotor do caso. “Eu inventei a história. Tinha um desentendimento com a minha sobrinha [casada com Henklain], estava desempregado. Por raiva e ganância do dinheiro, acabei inventando essa história”, disse a testemunha, no vídeo, ressaltando estar arrependida por ter mentido durante a investigação e de ter acusado Henklain pelo crime. No vídeo, ela disse ter sido coagida a continuar mentindo. “Quando tentei desmentir, eles não deixaram”, disse.
Schiffmann se defendeu da fala da testemunha dizendo que “esse foi o maior absurdo que já ouvi”. Ele também negou que a testemunha tenha acusado Henklain apenas para receber a recompensa que foi oferecida na época pela Secretaria de Segurança Pública por informações sobre a chacina.
Segundo depoimento
O segundo a falar foi o corregedor Rodrigo Elias da Silva, que presidiu o inquérito policial sobre a chacina na Corregedoria. Num depoimento de quase três horas de duração, Silva disse que a “testemunha Beta” reconheceu Cristilder como sendo o verdadeiro Boy, que participou, de fato, das chacinas. “Os dois Boys foram colocados para reconhecimento e a testemunha reconheceu Cristilder como o Boy”, disse. O depoimento de Silva foi bastante tenso: houve discussão entre a defesa e a juíza por causa do horário em que a chacina teria ocorrido e também entre o promotor do caso e um policial responsável pela escolta do réu.
O terceiro a falar foi o delegado José Mario de Lara, do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP). Segundo ele, a investigação no DHPP teve início quando o delegado Schiffmann apresentou ao departamento a “testemunha Beta”. Ele disse que houve também uma outra testemunha que teria visto dois carros da tropa de elite da Guarda Civil de Barueri passando pelo local de um dos crimes, momentos antes de passar um Sandero prata de onde teriam partido os tiros que mataram pessoas em frente a um bar. Isso indicaria, segundo a investigação, a parceria entre agentes da Guarda Civil de Barueri e de policiais militares na chacina.
Lara também disse que a “testemunha Beta”, em certa ocasião, quando participou de uma sessão de reconhecimento do criminoso, não confirmou Cristilder como tendo participado da chacina, mas que depois lhe informou que fez isso porque sofreu ameaça no dia anterior e teve medo de reconhecer o policial. Ele também disse que é “muito mais difícil e complexo” investigar crimes praticados por policiais, porque eles conhecem técnicas para dificultar a investigação.
Enquanto os depoimentos eram dados, Cristilder fazia anotações em um caderno. Em alguns momentos, solicitava a ajuda de algum advogado para fazer questionamento às testemunhas. O júri foi acompanhado por muitos familiares das vítimas e também dos policiais que são acusados ou foram condenados pelos crimes.
O julgamento
O júri teve início às 10h, com o sorteio dos sete jurados. Foram escolhidos quatro homens e três mulheres que vão decidir se condenam ou não o policial militar por homicídio. Depois do sorteio, tiveram início os depoimentos das testemunhas.
Antes do início do julgamento, o promotor Marcelo de Oliveira comentou também sobre o aparecimento de uma carta da “testemunha Gama”, que foi importante para a condenação de um dos policiais no julgamento anterior. Na carta, que só apareceu após o primeiro julgamento que condenou o policial, a testemunha volta atrás e diz que foi coagida pelo promotor a dar seu testemunho contra o policial.
“Aquela carta, na minha visão, é um tiro no pé. É a prova cabal de que a testemunha falou a verdade para mim e dois delegados de polícia e que, depois de ver o resultado do julgamento, sendo que essa testemunha é tio do policial condenado, alguma coisa [aconteceu] e a família ou ele próprio julgou ter de fazer algo para tentar reverter a condenação de 200 anos”.
O advogado de defesa, João Carlos Campanini, disse que seu cliente é inocente. Segundo ele, na noite da chacina, seu cliente saiu do quartel por volta das 22h30 e, por isso, não teria como ter participado das mortes. “Ele estava no quartel. Não tinha como ele começar a matar pessoas as 20h, sendo que às 22h ele ainda estava no quartel. Ele não participou desses crimes”, ressaltou.
Tensão
O julgamento de hoje foi acompanhado por membros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Walter Camilo de Julio, presidente da comissão de prerrogativa da OAB de Osasco. Segundo ele, no último julgamento, um advogado reclamou que estava tendo problemas, “sem conseguir exercer o amplo direito de defesa de seu cliente”. “Sabendo disto, nós nos antecipamos, oficiamos a juíza pedindo para que ela reservasse vagas para membros da comissão e nossa presença aqui é para garantir que o advogado possa exercer a defesa de seu cliente”.
Zilda Maria de Paula, mãe de Fernando Luiz de Paula, que tinha 34 anos quando foi morto na chacina, disse esperar que, nesse julgamento “seja feita a justiça”. Ela disse que sua vida, após a morte do filho, mudou completamente. “Não ouço mais rádio, vivo com sete cachorros, sozinha. Nunca pensei tanto no meu filho quanto penso agora. Ele tinha tuberculose e estava se curando para acabar morrendo desse jeito? Ele não devia nada a ninguém. Filho único. Tive quatro abortos para ter ele. Fiquei internada no hospital de repouso. Criei ele sozinho, para meu filho morrer assim? Se os caras conhecessem meu filho, isso jamais teria ocorrido”, falou.
Indagada sobre o fato de que os pais dos policiais alegam que seus filhos são inocentes, Zilda responde: “Todos falam. Mas quem matou esses meninos? Eles se deram um tiro na cabeça? Alguém matou. Não estou acusando ninguém porque não vi. Só sei que meu filho saiu de casa e levou um tiro”, disse ela. “Cada um se defende como pode. Nós nos defendemos com os mortos. Eles se defendem com os vivos”, acrescentou.
O pai de Henklain, o sargento reformado Roberto Tavares Henklain, também acompanhou o julgamento de Cristilder. Ele voltou a dizer hoje que seu filho foi condenado injustamente. “Espero justiça. O promotor trouxe aqui [no julgamento anterior] uma testemunha e forçou ela a continuar com a farsa para prender meu filho, porque eles queriam dar uma resposta para a mídia o mais rápido possível. Ele foi condenado inocentemente e os verdadeiros matadores estão aí dando risada”, falou ele, ressaltando que “vai até o inferno para buscar a verdade. Tenho a prova que ele não fez isso. Ele estava em casa. Trabalhei 30 anos na polícia militar e sei o filho que eu tenho”, acrescentou. O filho, segundo ele, está preso no presídio militar Romão Gomes há quase três anos.
O julgamento
Depois do depoimento das testemunhas, segue o interrogatório do réu e as fases de debates da defesa e da acusação. Só então o júri popular se reúne para decidir se condena ou não o policial militar Victor Cristilder por participação nas mortes. O júri será presidido pela juíza Élia Kinosita Bulman. A previsão é que o julgamento se estenda até sexta-feira.
Edição: Augusto Queiroz