Camila Aparecida: intervenção militar, moradia e a favela como resistência

Conheça a história da dona de casa que se tornou uma importante referência na luta por moradia no Complexo do Alemão

Por Mariana Pitasse, do Rio de Janeiro (RJ)

“A favela é o quarto de despejo de uma cidade”. A frase mais famosa da escritora Carolina Maria de Jesus caberia perfeitamente na fala firme e crítica de Camila Aparecida dos Santos, de 33 anos, moradora do Complexo do Alemão, o bairro que abriga um dos maiores conjuntos de favelas do Rio de Janeiro.

Mas diferente da escritora que usou a literatura para denunciar as injustiças e as desigualdades sociais, Camila utiliza a fala. Foi através das conversas e troca de informações com vizinhos e conhecidos que passou a ser reconhecida como uma importante referência na luta por moradia no Alemão.

A vida de Camila sempre esteve relacionada com a luta, para ela não tem como separar, pois são a mesma coisa. Ela se envolve no que acredita ser uma briga importante para garantir seus direitos na comunidade desde quando era adolescente, mas foi em 2016 que ganhou visibilidade e reconhecimento no Alemão. Neste ano, foi uma das lideranças da mobilização que resultou na reocupação do terreno da antiga fábrica da cervejaria Skol, em Bonsucesso. O acampamento durou menos de um dia porque as famílias foram reprimidas com violência pela Polícia Militar. Camila foi peça fundamental de resistência durante o ato e também depois nas negociações com o poder público.

“As pessoas vão te ligando à luta e começam a te procurar. Mas tive algumas dificuldades nesse processo, porque geralmente as lideranças são pessoas mais velhas. Fui acusada de ser muito criança ou então de não conseguir dar conta por ser mulher. Eu tive que ganhar respeito, mesmo fazendo isso minha vida toda”, conta.

Camila, seu marido e os três filhos eram uma das 500 famílias que moraram na ocupação, conhecida como Favelinha da Skol. Lá ficaram por 12 anos, do final dos anos 1990 até 2010, quando foram removidos após um acordo com o governo do estado. As famílias saíram de forma espontânea. Os galpões da fábrica que serviam de moradia foram demolidos para que as casas fossem construídas no próprio terreno e durante as obras - que durariam um ano e meio - as famílias receberiam o aluguel social, em mensalidades de R$ 400.

No entanto, mais de oito anos depois, não há qualquer sinal do início das obras e o terreno se tornou um lixão a céu aberto. As negociações com o poder público, para exigir que o financiamento das casas fosse feito através do programa Minha Casa, Minha Vida, estão paralisadas desde o golpe de estado instaurado no país e a consequente mudança de gestão do Ministério das Cidades.

“Toda a vez que venho no terreno, eu penso que poderíamos estar aqui com nossas casas. A gente ficou abandonado esse tempo todo e quando o poder público lembrou da gente foi para favorecer eles próprios. A gente, tão inocente, aceitou. Por isso que falo, quando aprendo alguma coisa eu coloco em todos os grupos do WhatsApp, compartilho tudo, porque são nossos direitos, não podemos ser enganados. A minha luta é para que as pessoas tenham ciência, a gente tem dever mas também tem direito e temos que brigar por eles”, acrescenta.

A dona de casa, que acabou de ser aprovada pelo Enem para ingressar no curso de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atribui sua força como uma herança de sua família. No final dos anos 1950, Wilson Freitas, seu avô, abriu "na inchada" o terreno que viria a se tornar a favela da Grota, no Alemão, anos mais tarde. Sua mãe, Rosângela Freitas também é referência na luta por direitos na localidade.

“Eu cresci vendo minha mãe brigar. Quando pequena tinha uma igreja que dava leite e alguém começou a desviar esse leite que seria distribuído. Eu lembro, com muita clareza, da minha mãe e outras mães brigando por causa disso. Fui inspirada pela minha mãe e outras mulheres fortes desde muito pequena”, conta.

Dessa experiência veio o estímulo também para formar, ao lado de outras mulheres, o Movimento de Mulheres do Alemão. “Cada uma participava de um projeto e toda a vez que precisava uma recorria a outra, a gente viu que tínhamos que conversar, nos unimos e criamos o movimento. Na semana passada conseguimos entregar 540 kits escolares, com mochila e todo o material, para crianças que não tem acesso a nada. Nosso foco é quem realmente precisa”, explica.

Camila é mãe de três crianças, Letícia, de 8 anos, Giovanna, de 4 anos, e Tales, de 2 anos. De acordo com ela, ainda que sejam muito pequenos, já se interessam por suas atividades e se envolvem com elas. “Depois que me tornei mãe fiquei mais motivada porque tudo é por eles. Outro dia mesmo eu falei que se eu morrer, posso ir despreocupada porque meus filhos já estão com o caráter formado. Eles vão continuar no mesmo caminho e outras pessoas vão ser impactadas por eles. Para mim, é muito trabalhoso tudo isso, mas o retorno é muito grande”, conta.

Intervenção militar

Os filhos são inspiração e também a maior preocupação de Camila, principalmente, com a intervenção militar instaurada no Rio de Janeiro na última semana. É de uma experiência de criança que ela se recorda quando pensa no exército reocupando o Complexo do Alemão.

“Quando tinha 10 anos, foi a primeira intervenção que eu me lembro aqui. Eu morava na Grota, me lembro dos tanques e os helicópteros, tenho isso nítido na minha mente, foi a primeira vez que eu assimilei o que é uma operação militar. Da última vez que estiveram aqui, tínhamos que ter identidade, comprovante de residência e carteira de trabalho em mãos o tempo todo. Hoje eu não tenho comprovante de residência, estou cada hora em um lugar porque o poder público me deixou sem casa. Sou obrigada a viver me mudando. Como que eu vou andar nas ruas aqui com exército?”, questiona.

Para Camila, a intervenção que o Alemão e as outras favelas do Rio precisam não é militar e, sim, uma intervenção nos serviços essenciais, como saúde, educação e habitação. “A gente está precisando de fato de uma intervenção federal, estamos esperando o ministério das cidades liberar o recurso para construir as moradias. Por que essa intervenção não vem? Precisamos de uma intervenção para construir mais moradia e não mais violência. O que o exército vai fazer aqui é uma troca de comando. Só isso. Usar força e gerar mais ódio”, conclui.

Edição: Simone Freire | Fotos: Pablo Vergara

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