Nenhuma família foi assentada no ano de 2017. Essa é a denúncia que o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) fez logo no início do ano, em resposta ao anúncio do governo golpista de Michel Temer sobre supostos dados positivos para a reforma agrária no período. O dado denunciado pelo movimento foi confirmado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) ao portal de notícias UOL, em matéria divulgada na terça-feira (2).
Em 2016, o número de famílias assentadas (1.686) já era o menor de série histórica, que teve início em 1994. Para se ter uma ideia, segundo o Instituto Socioambiental, a média de famílias assentadas no período de governo de Dilma Rousseff foi de 25 mil.
O Incra, órgão vinculado ao governo federal, é o responsável por adquirir terras improdutivas, ou seja, que não cumprem sua função social, e também cadastrar as famílias que ocuparão a área futuramente.
Segundo João Paulo Rodrigues, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, “isso demonstra a falta de compromisso desse governo golpista com as famílias Sem Terra, e a demonstração do porque terem aumentado os conflitos no campo”.
Em entrevista para o Brasil de Fato, Rodrigues comenta os dados divulgados pelo Incra, os altos índices de violência no campo, a influência das grandes corporações no sufocamento da reforma agrária, as batalhas travadas contra o governo golpista de Michel Temer, e as ações de cara ao próximo 8 de março, Dia Internacional da Mulher Trabalhadora.
O Brasil de Fato fez contato com o Incra por telefone e também por e-mail, mas até o fechamento da reportagem, não houve resposta sobre a confirmação dos dados divulgados pelo portal de notícias UOL.
Confira a entrevista em texto e vídeo:
Brasil de Fato: Uma notícia recente aponta que no ano passado não foram criados assentamentos no Brasil. Em 2016, o número já era o menor da série histórica, com 1.686 assentamentos. Porque?
João Paulo Rodrigues: A informação que está na internet, e nós já sabíamos isso a partir dos acampamentos e assentamentos, é que no ano de 2017 nós não tivemos nenhum assentamento de famílias Sem Terra no Brasil. Isso demonstra a falta de compromisso desse governo golpista com as famílias Sem Terra, e a demonstração do porque terem aumentado os conflitos no campo. Justamente por essa falta de conquista e essa falta de melhoria de vida nas condições dos acampados que vivem no país inteiro.
É importante dizer que nós temos aproximadamente 130 mil famílias acampadas, a grande maioria vinculada ao MST, esparramadas em acampamentos de todos os estados. A sua maioria, cerca de 50%, está na região nordeste do país e áreas históricas, emblemáticas, onde estamos na luta.
Nós temos acampamento no sul do Pará, na região de Marabá, no Eldorado, que são acampados há seis, sete anos. Nós temos acampamento em Minas Gerais de oito anos de idade. Nós não conseguimos avançar no período do governo Dilma [Rousseff (PT)], que tinha muita dificuldade, mas no governo Temer a paralisação foi completa.
Nós temos feito denúncias junto à sociedade, nos meios de comunicação, no Congresso Nacional, de que a única forma de resolver o conflito no Brasil, é fazer a reforma agrária. E ela tem que iniciar pelas famílias que vivem hoje nesses acampamentos.
As mudanças na lei de cadastro das famílias que foi promulgada em 2017, foram um fator relevante?
De forma alguma. Houve um problema real, que o TCU (Tribunal de Contas da União), ainda no período do governo Dilma, paralisou por um certo tempo todo o projeto de reforma agrária, mas o principal problema da reforma agrária hoje é o orçamento.
Não tem nenhum tipo de recurso disponível para a aquisição de terras, também não há uma preocupação do governo para que possam ser feitas desapropriações de latifúndios que não cumpram a função social. É importante que as pessoas possam saber: nós temos uma quantidade imensa de latifúndio improdutivo no Brasil, onde poderia ser feita a vistoria, o acompanhamento ao cadastro, e todas as informações, por exemplo, do número de famílias que poderiam ser assentadas.
Só do governo Dilma, nós temos um banco de dados com áreas vistoriadas, segundo o qual daria para assentar mais de 100 mil famílias no Brasil inteiro. E o governo optou por não fazer novos assentamentos. Não comprou áreas para resolver o conflito, pelo contrário, apostou em deixar as famílias largadas pelo país afora.
O ano de 2017 também foi marcado por muita violência no campo. São mais de 65 mortes no Maranhão, Mato Grosso e principalmente no Pará, segundo a CPT (Comissão Pastoral da Terra). Você acredita que elas estão ligadas diretamente às posições do governo golpista de sufocamento da luta pela terra?
Olha, nós estamos vivendo um período muito complicado no campo. Há uma onda de ataques vindo do latifúndio improdutivo, com milícias armadas, uma onda de ataques feita, inclusive, em alguns estados como o Pará, pela própria polícia. E uma onda muito perigosa de ódio, provocada em especial pelos "bolsonaros" da vida, que estão esparramados por aí e incentivam publicamente que as famílias Sem Terra devem ser atacadas por esses neofascistas.
Os números são assustadores. Para se ter uma ideia, é importante dizer que esse é um dado organizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que é um órgão vinculado à igreja católica, que diz que, no período do governo golpista, foram assassinados mais de 100 agricultores Sem Terra, indígenas e camponeses no Brasil.
É um número muito assustador, porque são pessoas que estavam lutando por um direito, que queriam ir para a terra, e esse número demonstra o descaso do governo federal em resolver o problema do conflito e, ao mesmo tempo, não há indícios de que qualquer dessas pessoas que cometeram os crimes foram presas, ou julgadas, ou se tem algum processo em curso.
Porém, nós achamos que o momento não é de criar uma paranoia de que, quem está na terra lutando pela reforma agrária, será assassinado, o momento é de fazermos as denúncias, pedir que a justiça e o Ministério Público possam dar os devidos encaminhamentos sobre esse caso e continuar a luta pela terra.
As pressões da bancada ruralista também influenciam nessas ações violentas contra sem terra?
Na sua grande maioria. É uma mistura delicada, porque hoje o nosso inimigo não é só o latifúndio, aquele que andava com o revólver na cinta, que andava por aí fazendo enfrentamento ao Sem Terra. É um latifúndio mais complexo. O agronegócio deu uma cara moderna. Ou seja, o grupo que tem uma exposição de gado, de trator, de cavalo, em uma grande empresa, é o mesmo que tem trabalho escravo em várias regiões do país.
Parte dos latifúndios hoje são sócios dos meios de comunicação. Se você pegar o grupo Bandeirantes, eles têm 60 fazendas. Produtivas ou não, mas eles têm um pé e um interesse próprio no agronegócio. Se você pegar a Rede Globo, ela é sócia e tem uma campanha publicitária que é essa famosa: o "Agro é Pop", o "Agro é Tech". E o "Agro Mata"? Não, isso eles não falam...
Então mexer com o latifúndio improdutivo é um problema, porque agora ele tem alianças com o setor dos meios de comunicação e setor dos bancos.
E por fim, na jornada de luta que nós fizemos no ano passado, descobrimos que o latifúndio tem uma aliança muito próxima com os políticos e com os corruptos. E parte deles estava na Lava Jato. Tem muitas áreas que são usadas para lavar dinheiro. Nós tivemos o caso do grupo dos dirigentes de futebol da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), que têm fazendas.
O MST faz parte da Frente Brasil Popular, que é uma organização de movimentos populares e centrais sindicais, reunidos para propor alternativas ao período que vivemos. Como o movimento tem se articulado na luta contra o governo golpista, ao lado dessas organizações?
Nós tínhamos muitas críticas ao governo Dilma, por não ter avançado na reforma agrária, pelas dificuldades que tivemos. Agora, o MST não teve dúvida de que o que estava em curso era um golpe não somente contra a presidenta Dilma, mas contra o povo brasileiro, contra a classe trabalhadora.
Um golpe organizado pelo sistema financeiro, pelos bancos, com o apoio da Fiesp, dos setores da classe média inconformados com a melhoria social que tivemos no governo do PT e claro, com o apoio dos americanos e todo o serviço de inteligência que tinha como objetivo mudar a rota internacional da política que o Brasil tinha em curso.
Nosso desafio é continuar lutando contra esse governo. Nós não podemos abrir mão da nossa luta contra o golpismo. Parar as políticas de ajuste, como a reforma da Previdência e tentar deixar esse governo sem conseguir dar passos.
No campo, nós temos conseguido parar esse governo. A titulação dos assentamentos, a privatização, não deu certo. Tentaram, mas não avançaram. Eles queriam acabar com a titulação das terras quilombolas e também não deu certo, ganhamos na justiça. As terras indígenas estão paradas, não conseguiram e recuaram.
Mesmo em outras áreas sensíveis, como os transgênicos, nós temos conseguido segurar com muita força. A regularização de terras para estrangeiros também não conseguiu passar.
A avaliação do Movimento é que tem sido uma briga boa. Eles ganham uma, nós ganhamos outra, ou seja, podemos dizer que temos aí um empate. Diferente de outras áreas que o golpismo conseguiu ser vitorioso.
Nossa jornada de lutas na próxima semana é para pressionar o governo para que famílias sejam assentadas nesse ano, pressionar o governo para retomar o orçamento na área de educação do campo e pressionar o governo contra as mortes que estão acontecendo no campo. E aí também o Ministério Público, a Polícia Federal, toda a estrutura de polícia deve procurar esses fazendeiros que andam matando Sem Terra.
Como está articulação do MST para a jornada do Dia Internacional da Mulher, no próximo dia 8 de março?
As mulheres do Movimento estão muito determinadas para fazer a luta contra o agronegócio, em defesa das pautas e bandeiras feministas históricas da classe trabalhadora. Fizemos uma importante mobilização no sul da Bahia agora e por todo o país, Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, nós estamos mobilizados. Vai ser uma grande intervenção pública, nas ocupações que serão feitas nos próximos dias.
No dia 8 nos encontramos com as mulheres urbanas e continuamos o protesto. Vai ser uma boa resposta contra o latifúndio, contra os golpistas e contra os conservadores.
Edição: Mauro Ramos