Milhares de familiares de juízes, desembargadores e outros membros do Judiciário recebem pensões como herança – alguns, pela vida toda, como a atriz Maitê Proença, que permaneceu solteira para manter o pagamento mensal do pai procurador de Justiça.
Segundo levantamento realizado pela Pública no site do CNJ e nos tribunais, mais de 4 mil familiares de magistrados e servidores do Judiciário mortos receberam mais de R$ 85 milhões apenas em dezembro de 2017, incluindo pensões vitalícias, temporárias e pagamentos retroativos.
Os dados são referentes a 59 dos 92 tribunais e conselhos de justiça brasileiros e reúnem informações disponibilizadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desde novembro de 2017 com dados publicados nos portais de transparência dos tribunais. Os demais órgãos não discriminaram os gastos com pensionistas nas planilhas enviadas ao CNJ ou se recusaram a disponibilizar as informações à reportagem.
Os pagamentos feitos pelo Judiciário são concentrados: apenas 91 dos mais de 4 mil beneficiados receberam quantias acima de R$ 100 mil em dezembro.
Esse grupo concentra R$ 22,2 milhões em pagamentos e representa cerca de um quarto de todos os desembolsos dos tribunais no mês com pensões. Por outro lado, cerca de 100 pensionistas receberam menos de um salário mínimo em dezembro. Nesse grupo, estão pensionistas de técnicos ou analistas judiciários. A diferença se dá porque o cálculo das pensões reflete os rendimentos do funcionário quando vivo.
Os pagamentos mais altos
Francisca de Assis Alves, do Ceará, recebeu o maior pagamento: R$ 7,2 milhões líquidos em dezembro. Segundo o Tribunal Regional do Trabalho (TRT-CE), o valor é resultado de um processo judicial pelo atraso no início do pagamento da pensão da viúva de um juiz do trabalho. Atualmente, Francisca recebe R$ 19,9 mil líquidos mensalmente da pensão vitalícia, benefício é pago há 12 anos para a pensionista.
Já Lucinea Ferreira da Costa, também paga pelo TRT do Ceará, recebeu o segundo maior desembolso em dezembro: R$ 683 mil líquidos, devido a atrasos no pagamento da pensão. O valor normal da sua pensão mensal é de R$ 21,1 mil líquidos, pagos há 11 anos.
Jandira Regina Kammsetzer Gnone, filha da ex-servidora Arlette Kammsetzer Gnone, do TRT do Distrito Federal e Tocantins, recebeu R$ 674 mil líquidos em dezembro. Beneficiária de uma pensão vitalícia, ela recebeu R$ 17,5 mil em novembro e R$ 27,7 mil em janeiro.
Além disso, a Pública apurou que há filhas solteiras de ex-magistrados e servidores do Judiciário que recebem pensões por longos períodos. Essa é situação de Maria Auxiliadora da Silva Ribeiro, da Bahia, que, além de R$ 660 mil líquidos em dezembro de 2017, recebe há 25 anos R$ 20,6 mil líquidos mensalmente do TRT baiano.
Há também pagamentos altos a membros da mesma família. Os irmãos Isabella Raiza e João Kaio Freire Frota embolsaram cada um R$ 232,5 mil em dezembro, pagos pelo TRE do Maranhão. O tribunal não respondeu à reportagem qual o valor mensal da pensão dos irmãos.
A reportagem tentou durante uma semana entrar em contato com todas as demais pensionistas citadas na reportagem por telefone, e-mail ou redes sociais, sem receber retorno.
Foi apenas em 1990 que a pensão a dependentes dos magistrados e servidores deixou de ser diferenciada para filhas solteiras. Também não é mais vitalícia, indo até os 21 anos para qualquer sexo.
Em 2003, a Emenda n° 41 definiu um limite que reduziu o valor das pensões: elas seriam iguais aos rendimentos do falecido, mas tudo que excedesse o teto do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) teria um desconto de 30%. Atualmente, esse teto é de R$ 5,6 mil.
Já em 2015, a lei alterou também as pensões de cônjuges, que receberão por toda a vida apenas se tiverem mais de 44 anos na data de falecimento do servidor. Atualmente, os filhos, sem distinção entre homens, mulheres ou se casados, recebem pensão até 21 anos, exceto se tiverem deficiência. Pais podem receber pensão, caso o falecido não tenha cônjuge dependente.
A proposta da atual reforma da Previdência, defendida pelo presidente Michel Temer (MDB), é ainda mais restritiva: a pensão seria de 50% do valor dos rendimentos do falecido que estiver aposentado, com acréscimos de 10% para cada dependente. O valor final seria dividido igualmente entre os dependentes.
O TCU afirma ter encontrado 19.520 indícios de pagamento indevido de pensão a filhas solteiras com mais de 21 anos. Segundo o tribunal, apenas essas pensões custam R$ 63,8 milhões mensalmente aos cofres públicos. O corte economizaria R$ 3,3 bilhões em quatro anos. De acordo com reportagem da Folha de S.Paulo, filhas solteiras de servidores que poderiam perder as pensões entraram com ao menos 336 ações pedindo a manutenção dos pagamentos. Desse total, 300 conseguiram liminares mantendo as pensões – no STF, Edson Fachin concedeu 221 em favor das pensionistas.
“O sistema previdenciário brasileiro tem sido instrumento de manutenção das desigualdades – e não de redução”, afirmou em entrevista à Pública a procuradora regional da República Zélia Pierdoná. Segundo ela, apesar de a lei já ter sido alterada, os custos das legislações anteriores seguirão com as próximas gerações, inclusive pelas decisões tomadas pelo Supremo favoráveis à manutenção de benefícios. “Você pega magistrados e servidores que contribuíram muito pouco, mas estão pagando pensões há 50 anos. Por que a filha de um servidor pode ficar recebendo pensão vitalícia quando a filha dos outros trabalhadores não recebe?”, questiona.
Por sua vez, a avaliação do secretário-geral do Conselho da Justiça Federal (CJF), Cléberson Rocha, vai no sentido oposto. Ele acha que os magistrados federais não devem ser vistos como “privilegiados” pelo regime de previdência, pois as contribuições da categoria em vida seriam mais que suficientes para pagar os custos das pensões e aposentadorias vitalícias.
Rocha argumenta que o desconto de 11% na folha de pagamento de cada funcionário, mais os 22% pagos pelo governo, tornaram a previdência dos servidores do Judiciário Federal superavitária entre 2011 e 2016, e não uma fonte de rombo para o país. “A Justiça Federal tem superávit nesses anos, segundo dados obtidos do Siafi [Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal], gerido pelo Executivo”, pontua.
Já para Mario Engler, professor de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), além das pensões gerarem um peso fiscal para o governo, o pagamento a filhas solteiras está desconectado da realidade. E o cenário não muda porque é o próprio Judiciário que decide sobre seus interesses. “Os membros do Judiciário são beneficiados por esse regime de pagamento de pensão. Há conflito de interesse no plano institucional. Mas esse não é o único tipo de conflito de interesse que existe no Judiciário. Julgar o auxílio-moradia que os juízes recebem pode significar um conflito de interesse”, avalia.
O julgamento do auxílio-moradia no STF, benefício que vem sendo questionado, deve ocorrer no dia 22 de março.
Edição: Agência Pública