Milhões de brasileiras e brasileiras foram educados no campo sob a força ética de uma frase: “água não se nega”.
Escondido nestas quatro palavras, o vigor de um conceito ético: água é de todos, água não tem dono, água não é um bem privado, água é um bem comum. E virou cultura incorporada com o leite materno e respeitada como doutrina Brasil afora em todos os cantões do país. Mesmo famílias inimizadas, uma precisasse de água, a outra cedia.
Inimaginável alguém considerar-se dono da água. Absurdos dos absurdos.
Esta visão camponesa da água como um bem público coletivo vigorou também quando a urbanização passou a exigir sistemas de armazenamento e abastecimento coletivo de água. O princípio permaneceu na nova forma de uso. A água gerida por empresas e sistemas públicos de abastecimento e o preço calculado tendo como base seu custo de obtenção, armazenamento, distribuição e projeção de ampliação, com tarifas básicas muito baratas e subsídios cruzados para equalização de custos. Assim a água poderia chegar a todos sem sacrificar os mais pobres. Sabedoria e capacidade pública de planejamento garantiram sistemas urbanos complexos e eficientes de abastecimento de água desde nossas pequenas aglomerações rururbanas até nossas megalópoles. Respeitando o princípio que água é de todos, para todos, com acesso a todos sem discriminação, bem comum que a ninguém se nega.
Hoje, em qualquer bar, meio litro de água sem gás custa mais que um litro de leite. E, sem dinheiro, sem água. Alguém se adonou da fonte, engarrafou e vende caro. E nega se não acontecer troca da mercadoria por dinheiro. Água virou mercadoria.
Os anos 90 do século 20 marcam o início da sanha privatista internacional sobre os bens da natureza e o Brasil virou alvo da cobiça internacional sobre as suas mais preciosas riquezas, entre elas, a água. Então as leis de aço do capitalismo, que tendem a tudo transformar em mercadoria – até amor e religião – lançou suas garras sobre um dos mais sagrados bens do povo, aquele que “a ninguém se nega”. Petardos diários nas escolas, nas rádios, nas TVs, destroem a cultura popular dos bens comuns para asfaltar nas consciências a aceitação da privatização da água de beber, do abastecimento doméstico de água, da água de limpeza, da água de irrigação, da água de lazer, das barragens, dos rios, dos aquíferos. Propriedade privada e controle de poucas empresas sobre um dos mais sagrados bens do povo.
Nestlé e Coca Cola, para citar duas bem conhecidas, já são os donas de grande parte das águas do mundo e sua voracidade se alastra sobre o Brasil.
Hora de começar a contê-los com a força e os instrumentos da sabedoria e da soberania popular -com consciência, resistência e luta - para depois de contidos, expulsá-los para bem longe dos bens comuns do povo brasileiro.
As águas do Brasil são do povo brasileiro.
*Frei Sérgio Antônio Görgen é da Ordem Franciscana, militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e autor do livro “Trincheiras da Resistência Camponesa”.
Edição: Nina Fideles