Motivo de interesse, mas nem sempre profundo, os acontecimentos na China tem tido repercussão cada vez maior no mundo e no Brasil. Neste sentido, é importante discorrer sobre a recente proposta de emenda constitucional, dentre várias, discutida na última reunião do Comitê Central do Partido Comunista da China encerrada em 25 de fevereiro, e sintetizada na retirada do limite de dois mandatos a cargos-chave, incluindo a presidência da República Popular.
Não é difícil supor o imaginário do pensamento jornalístico, acadêmico e de amplas parcelas das esquerdas influenciadas por um liberalismo tosco, importado e profundamente a-histórico: “Xi Jinping é um novo ‘ditador’”; “Aumenta o cerco às demandas ‘democráticas’”; “O livre pensamento dos ‘intelectuais críticos’ está ameaçado” (agora tendo de dar satisfação ao Estado de suas pesquisas no exterior, financiadas por esse mesmo… Estado). Proponho alguns raciocínios iniciais que se confundem com uma agenda de pesquisa em andamento. Vamos a eles.
Percebo que se trata de uma resposta ao esgotamento de um sistema político que teve o mérito de aumentar o grau do exercício de um corpo coletivo de dirigentes em detrimento ao risco de colocar os destinos do país sobre os ombros de um líder carismático. Um sistema legal socialista deu seus primeiros passos de elaboração com vistas, em Deng Xiaoping, de fortalecer ideias-força, entre elas a de “gerações dirigentes”, sendo a primeira delas nucleadas por Mao Tsé-Tung, a segunda pelo próprio Deng, a terceira e a quarta encabeçadas por Jiang Zemin e Hu Jintao. A atual e quinta geração tem à sua testa Xi Jinping. A cada geração, desde Jiang Zemin, cabe a missão de enfrentar os desafios de seu tempo de dez anos (dois mandatos de cinco anos). Observando por este prisma, a proposta de alteração constitucional pode ser uma marcha à ré? Pode ser. Mas não cabem absolutizações.
Uma das características das reformas econômicas chinesas foi a descentralização política que conferiu não somente maior liberdade de ação aos governadores de províncias e regiões autônomas. Tratou-se de uma reforma política exigida pelo seu tempo histórico, mas também uma exigência de “Grande Política” utilizada por Deng Xiaoping para enfrentar a resistência de Pequim nos momentos mais difíceis do início das reformas econômicas.
Essa descentralização, espelhando uma nova ordem “de mercado”, também conferia maior grau de poder e autonomia para gerentes de empresas, grandes e médias, em contraposição ao momento anterior de planificação central. O surgimento das Townships and Village Enterprises (TVE’s) precocemente ligadas ao mercado externo é um exemplo de resultado desta descentralização e de sua expressão no que chamo de “industrialização rural” que inaugurou novas formas de divisão social e regional do trabalho na China.
No geral, o resultado deste amálgama foi extraordinário em todos os sentidos, me dispenso de apresentar números e fatos a respeito. O ponto de conexão entre a proposta de reforma constitucional e o processo iniciado em 1978 está no fato, claro a mim: o “modelo” iniciado em 1978 e seu respectivo marco institucional tem mostrado sinais claros de esgotamento. Da mesma forma que se esgotou – em seu tempo – o “modelo soviético”.
As contradições surgidas no bojo deste longo e grandioso processo de crescimento e desenvolvimento foram proporcionais aos avanços observados: graves problemas sociais e ambientais, desigualdades sociais e regionais explosivas, degeneração social em grandes centros urbanos. Afora o fenômeno da corrupção que estava a abalar os alicerces de poder do PCCh, o levando ao mesmo destino de outras dinastias, ao se tornarem corruptas e ineptas, para darem conta, em seu tempo, de grandes obras hidráulicas.
Evidente que, ao longo dos últimos 40 anos, a capacidade de resposta do PCCh aos desafios postos pela realidade, interna e externa, é muito impressionante. Novos marcos institucionais foram surgindo ao longo do tempo de forma que o enfrentamento a essa gama de contradições possibilitasse novas fronteiras ao próprio processo de desenvolvimento. As “soluções de continuidade” entre um ciclo e outro de crescimento são uma característica fundamental do processo chinês.
Xi Jinping (a quem Fidel Castro classificou como “um dos líderes revolucionários mais firmes e capazes que conheci”) chegou ao poder em 2012 com a clara missão de enfrentar os desafios postos em seu tempo. Da mesma forma que seus antecessores, Jiang Zemin e Hu Jintao, o fizeram com brilhantismo. A marca da era Xi Jinping é a recentralização do poder estatal em todos os níveis, reestatização de amplas parcelas da economia e de seus fluxos de renda e conflito aberto às frações da burguesia mais afeitas à liberalização financeira. Fortalecimento de uma retórica marxista mais aguda e maior protagonismo exterior. Uma campanha violenta contra a corrupção foi desencadeada atingindo altas fileiras do Estado e do Partido.
Parêntese importante. Não devem ser poucos os inimigos criados por Xi Jinping nas altas cúpulas do PCCh. Neste sentido, segundo Richard McGregor, pesquisador do Instituto Lowy na Austrália e autor do livro “The Party”, sobre o funcionamento do Partido Comunista da China, a proposta de reforma constitucional “(…) consolida por enquanto a extraordinária autoridade de Xi sobre o Partido e o Governo, e adverte à sua legião de inimigos na cúpula do Partido, prejudicados por sua campanha anticorrupção, que ele não irá a lugar algum”. Nesses termos, a permanência de Xi dará um impulso ainda maior às ambiciosas iniciativas chinesas que contam com seu respaldo pessoal, como a Nova Rota da Seda e a transformação do país em uma potência tecnológica.
Há cerca de um quarto de século os círculos mais reacionários do planeta comemoravam o “fim do comunismo”. Não seria exagero afirmar que o maior acontecimento de nosso tempo está no fato de um partido comunista formado na esteira da 3ª Internacional fundada por Lênin esteja à frente da maior nação do mundo, um país pronto a tomar a dianteira da economia internacional. Nada disso estaria ocorrendo sem que o próprio PCCh também não demonstrasse capacidade de se reinventar ao longo do tempo.
Tenho dito que o processo recente percebido na economia chinesa (formação de 149 conglomerados empresariais estatais executando grandes políticas de Estado e as inaugurações de novos patamares em matéria de planificação econômica e de coordenação/socialização do investimento, por exemplo) pode estar dando forma a uma “nova formação econômico-social” (“socialismo de mercado”). Essa visão coloca-se em franca oposição aos que definem a China ou como mais um caso de “restauração capitalista” sob a forma de um “capitalismo de Estado” de sucesso, ou uma afirmação empírica das vantagens de uma “economia mista” ou de um “capitalismo wickseliano”.
Essa nova “formação econômico-social” ainda demanda o surgimento de novos marcos e arranjos institucionais capazes não somente de abrir novos campos e possibilidades ao processo de desenvolvimento. Mas também devem ser capazes de responder aos imensos desafios internos e externos do regime. O império chinês de tempos em tempos se recentralizava. A República Popular não tem motivo para ser diferente.
E, assim, o socialismo vai fazendo o caminho de busca de instituições que reflitam, segundo uma aceita definição à categoria marxista de formação social, a totalidade “infra e supra” que se forma e se desenvolve. A burguesia demorou mais de um século para encaixar algo que a Revolução Francesa tentou definir em 1789…
*É professor de Planejamento Econômico da FCE/UERJ e autor do livro “China Hoje: Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado” (Anita Garibaldi/EDUEPB, 2012)
Edição: Brasil Debate