Mas um projeto de lei que tramita no Senado estabelece que policiais possam atirar em pessoas que estiverem segurando uma arma de uso restrito, mesmo que não haja confronto. A proposta foi apelidada pelo próprio autor, José Medeiros, do Podemos-MT, de “Lei do abate”.
“O policial tem medo do enfrentamento porque não possui o equipamento ideal. Quando possui, não recebeu o treinamento adequado. E o que é pior: ele tem medo dessa política esquerdista instalada de vitimização do bandido, que protege criminosos e açoita policiais. Aquela velha máxima do Exército Brasileiro, de ‘atirar primeiro, perguntar depois’, foi trocada por ‘fique parado’, enquanto se gasta munição, atirando no chão. Isso porque, se ele mata um meliante, sofrerá sérias consequências administrativas e judiciais. Do contrário, se um policial morre, nada acontece. Simples assim!”, afirma o senador, que trabalhou por cerca de 20 anos na Polícia Rodoviária Federal.
Atualmente, o Código Penal livra quem provar que agiu em legítima defesa. Ainda assim, o agente poderá responder na Justiça caso sejam constatados indícios de excesso. O projeto de Medeiros cria uma espécie de “legítima defesa da sociedade” e transforma o ato de portar uma arma de uso restrito (ainda que ela não esteja em uso) em motivo suficiente para que a pessoa seja “abatida”.
Aos que pensam que essa é só mais uma iniciativa folclórica dos políticos que habitam Brasília, fica o alerta: a proposta de alteração no Código Penal foi apresentada em setembro do ano passado e, se aprovada pela CCJ, será enviada à Câmara dos Deputados. Segundo o autor, a votação na comissão deve acontecer ainda esta semana.
O relator do projeto na CCJ, senador Wilder Morais (PP-GO), aprovou com louvor a ideia, tecendo rasgados elogios em sua análise:
“Frise-se de antemão, este projeto atende a uma necessidade urgente dos corajosos homens e mulheres policiais em todo o país, que estão amarrados pela burocracia na guerra ao tráfico de drogas.”
Numa enquete feita no site do Senado, a proposta tem ampla maioria favorável entre os participantes. Até o início da tarde desta segunda-feira, havia pouco mais de 30 mil pessoas apoiando o projeto e apenas 696 contra.
A aparente empolgação com a ideia de um salvo-conduto para matar quem está com uma arma ilegal pode ser explicada pelos números da violência no país: em 2016, foram registradas no país 61.619 mortes intencionais – homicídios, latrocínios etc –, um recorde, de acordo com dados do Fórum de Segurança Pública.
Um ponto adicional, porém, é que 2016 também foi o ano em policiais mais mataram na história: 4.224 vezes, um aumento de 25,8% em relação a 2015. Houve ainda 437 mortes de policiais no mesmo ano, um aumento de 17,5% em relação a 2015.
“Aberração”
Conselheiro do Fórum de Segurança Pública, economista e pesquisador do Ipea, Daniel Cerqueira considera o projeto uma “verdadeira aberração em um estado democrático de direito”:
“Existem princípios universais consagrados, objetos de duas resoluções da ONU, de 1979 e de 1990, que vão completamente contra ao que diz esse projeto. Há que se seguir preceitos básicos de legalidade, legitimidade, de uso da força necessária e proporcional. A regra é só atirar e matar quando há situação iminente de risco de vida”.
“Quem não lembra do caso no Rio de Janeiro em que uma pessoa foi morta porque segurava uma furadeira? Isso pode se tornar ainda mais comum se o policial tiver já esse aval prévio para atirar”
Para Cerqueira, um projeto como esse vai estimular os excessos e ainda tende a colaborar com o aumento da corrupção policial:
“Como vai estar legitimado a matar, a cometer uma ação extrema, o policial pode usar deste poder para se fortalecer no mercado de corrupção. Além disso, certamente será um estímulo a mais equívocos. Quem não lembra do caso no Rio de Janeiro em que uma pessoa foi morta porque segurava uma furadeira? Isso pode se tornar ainda mais comum se o policial tiver já esse aval prévio para atirar”.
Questionado se a aprovação do projeto também não estimularia policiais a “plantarem” armas para justificar homicídios – denúncias do tipo não são raras em operações da PM –, o senador José Medeiros diz que o inquérito policial e o Ministério Público continuariam seguindo normalmente seu trabalho de investigação para verificar se houve o uso de arma restrita. Ele ainda aposta na filmagem das mortes pelos próprios policiais, com câmeras acopladas à roupa ou aos capacetes:
“Não creio que essa guerra se torne mais sangrenta. É preciso que a sociedade, através dos agentes públicos, retome, a curto prazo, a área de segurança pública. Mas, para isso, nesse primeiro momento, o combate terá de acontecer de forma igual. Eles conseguem armamentos que a polícia não possui. Portanto, quem tem tornado a guerra sangrenta têm sido os traficantes e suas milícias, e não o policial”.
Foto em destaque: Policial militar aponta arma durante operação na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro
Edição: Redação