São muitas as distorções, mentiras e omissões obsequiosas da série, mas destacaremos as mais importantes:
Quando a realidade se faz complexa demais, os nossos problemas parecem insuperáveis e não há esperanças de mudança, um dos caminhos é acionar um sistema que busca soluções mágicas. São os tempos dos heróis sobre-humanos salvadores de tudo pulando nos cinemas mundo afora. Eles podem ser mais ou menos parecidos com os humanos, mas são heróis, personagens que guardam proximidade e também um profundo abismo com as pessoas.
Da mesma forma cresce o que se poderia chamar de ceticismo. O pensamento que capta a realidade como um sistema de engrenagens fortes e resistentes, quase intransponíveis, que como na série mostra isso como um “mecanismo” sofisticado e que não tem começo nem fim: é quase a totalidade das relações, alimentando uma visão caótica de inimigos por todos os lados, um sistema forte e que todas as forças políticas são parte dele. Nesse quadro terrível surgem os salvadores: heróis de moral e ética de aço que parecem saídos diretamente dos quadrinhos para o mundo real.
Não acreditar em nada, mas que todo o “sistema” deve perecer e ser superado por algo “novo” é uma das consequências desse pensamento: do caos, do sistema que representa a totalidade, dos problemas muito enraizados, ante nossas incapacidades para mudar, vem uma resposta típica: a mágica dos personagens heroicos. Assim foi o enredo de uma trama baseada, em tese, em fatos reais.
Na última semana a série original da Netflix sobre a Lava Jato foi lançada. Prometendo ser uma série que trataria com seriedade o tema, mostrou ser uma peça de publicidade sem pudores nem disfarce. Tudo explícito.
Denominada “O mecanismo”, adota nome em alusão a uma reflexão de um dos personagens de que essa corrupção maior – alvo da operação Lava Jato – seria só parte de um mecanismo que nasce nas pequenas corrupções, que no caso da série foi um problema de encanamento e a empresa de água e esgoto sugeriu o serviço particular, obviamente uma estrutura paralela e de corrupção.
Os oito episódios são encadeados como uma trama, um thriller, meio de suspense e meio policial. Mas não faltou passagens de dramalhão de baixa qualidade que deixaria os diretores de filmes “b” com vergonha.
A série foi produzida com rapidez e divulgada coincidentemente no auge da tensão com a possível inabilitação e prisão inconstitucional de Lula. Coincidências, dirão os incautos.
A sequência poderia ser avaliada pela sua dinâmica, roteiro, direção, fotografia e muitos outros aspectos. Mas há um que salta aos olhos: a série anuncia ser uma ficção baseada em fatos reais. Muda o nome de tudo: a Polícia Federal virou polícia federativa, a Petrobras virou Petrobrasil e por ai vai. Mas escolheu construir uma narrativa que adota uma versão sobre os fatos que anuncia ter se baseado e usa e abusa da criatividade para distorcer, inventar e criar fatos em associação a fatos concretos. Isso sim é um “mecanismo” pretensamente potente: colar as imaginações e alucinações do diretor com fatos reais, fórmula contundente para convencer e construir uma realidade mais “interessante” do que a vida real. E muito mais útil aos propósitos do diretor e produção.
A partir desse ponto é recomendado que quem não assistiu ou não suporta “spoilers” interrompa a leitura.
Aos fatos mais gritantes dessa fábula diretamente da cabeça do diretor, com suas manipulações e maldades principais. Algumas são mentiras explícitas, outras são pura e simplesmente maldades para indução do expectador e outras são omissões gritantes – e necessárias – para não contradizer as escolhas do Padilha, obviamente. A trama alimenta a dualidade hollywoodiana de mocinhos contra bandidos. Nem precisamos de muito esforço para entender quem ficou de cada lado.
São muitas as distorções, mentiras e omissões obsequiosas da série, mas destacaremos as mais importantes:
1. LIVRO DO VLADIMIR NETTO: o jornalista global Vladimir Neto escreveu o livro entre janeiro de 2015 e maio de 2016. O livro tem a profundidade de um pires e é a típica literatura de aeroporto. O autor não indica bibliografia consultada, mas apenas cita que realizou 132 horas de entrevistas “sem falar em todo o tempo dedicado a ler processos e checar informações da Polícia Federal, do Ministério Público Federal, da Justiça, de advogados e investigados”1. O autor é filho da Miriam Leitão, figura conhecida pelas análises tresloucadas na economia e oposição aos governos Lula e Dilma. O prefácio é de Fernando Gabeira, que destaca a imparcialidade da Lava Jato, já que não era mais somente “contra” o PT, mas após o golpe, também passou a investigar e condenar o MDB. Recheado de fotos dos acusados – e do autor com o Juiz Moro, aproveitou o calor do auge da operação para vender livros nos aeroportos.
2. ESCÂNDALO DO BANESTADO: O Banestado é uma investigação arquivada pelo engavetador geral da república dos tempos do FHC, mas na cabeça do Padilha ela é de 2003. Qualquer pessoa pode fazer uma pesquisa e perceber que é uma investigação entre 1996 e 2002 que apurou o desvio de aproximadamente 30 bilhões de dólares via as chamadas contas CC5 do Banestado (PR) para os EUA. As investigações foram arquivadas e contaram com a aquiescência de um jovem juiz que logo depois assumiria a 13ª Vara Federal de Curitiba. Mas o filme mostra como uma operação de 2003 – o primeiro governo Lula e induz que ele tenha arquivado.
3. ALBERTO YOUSSEF: O doleiro é o grande vilão da trama e tem um advogado poderoso. Ele tem trânsito livre no comitê de campanha da Dilma na primeira eleição e aparece dialogando com personagens importantes da campanha, claramente para associar o doleiro ao PT. Esse personagem negocia delação no caso do Banestado graças a uma divisão entre PF – que o perseguia – e o MPF, que o acolheu graças a ação de um advogado poderoso também chamado gentilmente de “bruxo”.
4. MARCIO THOMAZ BASTOS: é esse advogado que teria limpado a barra do doleiro, mesmo sem nunca ter defendido Yousseff. Mas esse fato não foi considerado e ele foi tratado como um grande artífice da condução de todos os esforços para enfraquecer a operação Lava Jato ali ameaçada. Tratado como “Bruxo”, aparece em diversos momentos como um grande arquiteto da ofensiva contra a operação e pela restauração do ambiente seguro à corrupção.
5. POLICIAL IMAGINÁRIO É O GUIA DE TUDO: o grande personagem por trás de todas as operações – no Banestado teria se frustrado, diagnosticado como bipolar e tentado se matar, seguiu como personagem central na condução mais estratégica das investigações. Esse ex-policial faz reflexões iniciais de que não conseguiu nada material na vida sendo policial, apenas tem “um pequeno sítio no Paraná” em uma reflexão que é justificadora da corrupção: a profissão é avaliada na perspectiva de quanto se acumulou e o policial se compara com o doleiro. Pobreza absoluta de argumentos e roteiros. Pobre. Talvez a coerência esteja em identificar que essa operação contou com uma condução externa que a imaginação leva a lugares longínquos. Teria acertado nesse ponto o diretor? Seria uma contradição de sua loucura, algo irrefutável que precisou vestir essa figura externa com a roupa de um policial expulso da PF e com problemas psicológicos?
6. POLÍCIA FEDERAL: é uma espelunca total. O superintendente no Paraná seria contrário à operação, vazando dados, vendendo favores e tudo mais. Os presos corrompendo os policiais para obter regalias: bebidas, comidas, direito a festinhas, celulares. Tudo para valorizar o esforço heroico de alguns abnegados investigadores e uma delegada muito focada e incorruptível, que lutaram para provar e investigar os fatos contra forças internas da PF. Esperamos que a Polícia Federal se manifeste sobre essa ficção inofensiva.
7. SERGIO MORO: é o personagem mais bem construído. Um sujeito de hábitos simples, afeito à boa técnica, imparcial - os despachos com ele – MPF ou PF – nunca resultam em promessas, mas apenas que fará o trabalho de avaliar e estudar com base na lei. Poucos personagens no cinema foram tão protegidos e construídos com essa força. O juiz é humilde, vai de bicicleta para o trabalho, indiferente a qualquer vaidade, age com rigor ante qualquer fato. Um verdadeiro herói travestido de toga. Uma rocha de coerência. A seletividade é tamanha que várias especulações são lançadas – como a operação “abafa” ou a ameaça a operação por dentro da PF. Porém, nada se falou dos vazamentos criminosos e da intensa presença da mídia nas operações do juizeco. Não à toa: o diretor chamou-o de samurai (2) sem líder: independente e justiceiro); e o autor do livro tem fotos e mais fotos babando ao lado dele.
8. LULA: o ex-presidente é o oposto do juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba. Sempre que aparece está bebendo whisky, numa clara intenção nefasta, bem como está tramando e conspirando. Com falas arrogantes e autoritárias, o principal tema abordado pelo “personagem” é para conter a operação. O disparate chega ao nível de usar a fala do senador Romero Jucá (MDB) gravada pelo Sergio Machado em que menciona a necessidade de “estancar a sangria”, mas para o cineasta essa fala do golpista Jucá no personagem do Lula é tema de “bobocas”, já que, segundo o radicado nos Estados Unidos, essa expressão é muito popularmente utilizada.
9. DISPUTA DE EGOS: além do ex-policial que induz a investigação pelo caminho correto, o enfrentamento às tentativas do superintendente em conter a investigação, ainda adicionou o elemento da disputa egóica entre a delegada e o Ministério Público Federal para aparecer na mídia e ser valorizado pela sociedade. Chegam a mostrar uma coletiva de imprensa em que a disputa chega às raias do ridículo e se apresentar como uma disputa por narrativa e pelo microfone. Uma pobreza total.
10. UMA OPERAÇÃO AMEAÇADA: assim como o filme “Polícia Federal: a lei é para todos" (3), a narrativa da série segue a lógica de uma operação permanentemente boicotada e ameaçada contrastando com a realidade de uma operação sem limites, que abusou de vazamentos (sempre seletivos), do abuso das prisões cautelares (a delação ou a prisão seguiu até a condenação) e da relação com a grande mídia (que cuidou de condenar quem bem quis antes de qualquer apuração e julgamento). Essa fixação por converter a operação em alvo de poderosas forças contra ela bordeia a alucinação.
11. IMPRENSA É UM SUJEITO OCULTO: diferentemente do que preconiza do juiz federal e do que se fez na prática, a operação é tratada como uma ação técnica, rigorosa e que a imprensa mal aparece. Atentando contra a memória de todo mundo e contra a realidade o filme converte a imprensa, força relevante no golpe e no apoio aos abusos e ilegalidades da operação, em uma personagem coadjuvante em que meramente cumpre seu papel de divulgar os fatos e permitir que o povo conheça essa operação e seus heróis. Patético é o mínimo.
12. DILMA É RUDE E EMBURRECIDA: a presidenta aparece em diversas oportunidades. Sempre combinando com uma imagem de figura rude, grosseira, senhora de si e profundamente arrogante. E para completar a abordagem fictícia, constrói-se uma personagem incapaz e até mesmo meio emburrecida em meio a tudo aquilo. O embrutecimento e emburrecimento dela sobrevaloriza o seu construtor maior como chefe de tudo, sendo absolutamente funcional ser ela essa figura que ajuda a construir o personagem central da trama como o arquiteto do maior esquema de corrupção do Brasil: Lula.
13. MICHEL TEMER É UM TRAIDOR: o coadjuvante aparece nesses termos. As aparições são para demonstrar uma figura que vivia da relação com o PT e assim que teve oportunidade, traiu. O fez em passagens em que o personagem toma whisky (deve ser uma obsessão do diretor ou arremedo do GodFather dos trópicos) e menciona que fica alegre com a possibilidade de assumir o poder. Rindo, ele diz: “vice é para isso” ou algo assim.
14. AS OMISSÕES FICAM LATENTES: Conduções coercitivas abusivas (sem qualquer prévia intimação), prisões preventivas que funcionam como torturas, bloqueio de bens em uma amplitude inconsequente, aliança absoluta com os grandes meios de comunicação – especialmente a Globo e a Veja, bem como a proteção total do Moro, construído como herói dos heróis, e Lula, Dilma e Márcio Thomaz Bastos como figuras nefastas e operadores de toda luta contra a operação Lava Jato.
O diretor, vivendo fora do Brasil, certamente deve ter suas razões para tantas distorções, mentiras explícitas, tentativas de indução do expectador e silêncios obsequiosos aos fatos mais relevantes da operação. A distância do país talvez tenha ajudado a fantasiar as coisas.
A série alimenta uma visão caótica da realidade, não sem estimular o pensamento de que não existem saídas para um mecanismo tão duramente arraigado, e diante disso brinca com personagens heroicos. Forçoso dizer que Padilha se forçou a mostrar a humanidade desses heróis inquebrantáveis: juiz namorador, delegada apaixonada e frustrada com uma relação, medo, ansiedade, e um dos mentores de tudo é um sujeito com problemas psicológicos e com baixa capacidade de lidar com a frustração. Mas isso não garante superar a mitificação dos personagens e dos mocinhos.
Os mocinhos, de um lado, foram humanizados dentro da artificialidade do dramalhão, e do outro lado, como demarcou a série, estavam bandidos desumanos, rudes, sem sentimentos, apenas portando maquinações e planos terríveis para dominar o mundo.
A série da NetFlix usa e abusa dessa divisão hollywoodiana entre bons e maus, mocinhos e bandidos, pinta a realidade como caótica e que forças terríveis dominam o Brasil (aqui o destaque para o maior inimigo da série: Lula) alimentando um ceticismo, a descrença em tudo e em todos, que é absolutamente funcional nesses tempos: quem não acredita em nada espera o que pro futuro? Um super-herói, uma saída mágica (a-histórica), uma solução incrível vinda “de fora” desse caos. Pode chamar isso de um desejo de mudança “total”: fora todos, por renovação absoluta, chegando as raias de clamar por tempos autoritários e uso da força contra tudo e a todos.
O ceticismo é a ante sala do fascismo.
(1) “Ao longo de 17 meses, de janeiro de 2015 a maio de 2016, me dediquei a reunir informações de bastidores, a pinçar os melhores diálogos, a perfilar os principais personagens para contar esta história para você, que me lê agora. Perdi as contas de quantas entrevistas eu fiz, quantas mensagens mandei e recebi por vários aplicativos, quantas conversas tive e a quantos cafés, almoços e jantares compareci para tratar da Lava Jato. Minha talentosa editora, Virginie Leite, a quem agradeço enormemente pela paciência e generosidade, me pediu que contabilizasse tudo isso em detalhes. Desculpe, Virginie, se eu fizesse isso ia atrasar o livro. A única coisa que consegui levantar é que foram mais de 132 horas de entrevistas. Sem falar em todo o tempo dedicado a ler processos e checar informações da Polícia Federal, do Ministério Público Federal, da Justiça, de advogados e investigados. Enfim, não houve um dia nesse período em que eu não falasse da Lava Jato.” Capítulo Agradecimentos - Os bastidores dos bastidores – páginas 315 e 316 do livro digital
(2) “Caiu Cunha e caiu Dilma. Será que ainda não deu pra entender que Sérgio Moro é samurai ronin?” - https://oglobo.globo.com/brasil/artigo-samurai-ronin-por-jose-padilha-19286565
(3) https://www.brasildefato.com.br/2017/12/26/artigo-or-sobre-o-filme-da-lava-jato/
* Ronaldo Pagotto é advogado e militante da Consulta Popular.
Edição: Luiz Felipe Albuquerque