Aury Lopes Júnior é um jurista gaúcho, doutor em Direito Processual Penal pela Universidade Complutense de Madrid em 1999. Advogado criminalista, é também Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Membro da comissão instituída pelo Conselho Nacional de Justiça que vai estudar, analisar e emitir nota técnica sobre o Novo Código de Processo Penal Brasileiro, o professor concedeu uma entrevista exclusiva ao Brasil de Fato em que fez duras críticas ao que chama de ‘postura esquizofrênica’ do Supremo Tribunal Federal (STF), durante o julgamento do pedido de habeas corpus preventivo do ex-presidente Lula, na última quarta-feira (4).
"Por mais que se tente argumentar que aquilo era um habeas específico para uma pessoa, não tinha como fugir da questão de fundo que era: é ou não é constitucional a execução antecipada da pena. Para que se tenha uma ideia, quando esse país foi descoberto em 1500, o mundo do direito processual já sabia o que era trânsito em julgado. Não vai ser o Supremo que vai reescrever o que é trânsito em julgado", ponderou Aury.
Leia a seguir a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Dr. Aury, começo perguntando se lhe surpreendeu de alguma maneira o resultado do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula ontem no STF?
Aury Lopes Junior: Eu realmente me surpreendi não tanto com o resultado, porque estava dentro do horizonte do possível, mas com a maneira como as coisas foram conduzidas, ou seja, com a própria questão de ter pautado primeiro o habeas corpus e não ter pautado as ADCs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade) antes, então isso já foi uma primeira surpresa. A segunda surpresa foi ter começado a votação e suspendido por uma semana e meia, gerando toda uma pressão em cima, e depois, claro, a surpresa passou pelo conteúdo dos votos com algumas distorções conceituadas por bastante populismo punitivista e por uma grande dose de impacto diante do paradoxal voto da ministra Rosa Weber, que realmente decidiu de uma maneira contraditória em si mesma.
Sobre o voto da ministra Rosa Weber, foi correto o entendimento dela de que o julgamento analisava o pedido específico de habeas corpus, sem questionar o mérito, ou seja, a execução antecipada da pena?
Por mais que se tente argumentar que aquilo era um habeas específico para uma pessoa, não tinha como fugir da questão de fundo que era: é ou não é constitucional a execução antecipada da pena. Para que se tenha uma ideia, quando esse país foi descoberto em 1500, o mundo do direito processual já sabia o que era trânsito em julgado. Não vai ser o Supremo que vai reescrever o que é trânsito em julgado. Esse é um conceito que não pertence ao Supremo. É contraditória essa posição dela [Rosa Weber], na medida em que tergiversa um problema. Na medida em que tenta decidir sem decidir. Porque é um imenso paradoxo dizer que é contra uma execução antecipada e negar um habeas corpus no qual se discute a execução antecipada.
Ela [Rosa Weber] alegou o princípio da colegialidade, ou seja, o respeito à decisão tomada pela maioria, em 2016, em relação à prisão após condenação em segunda instância.
Na verdade, ela estava dizendo que respeita uma colegialidade da qual ela mesma é membro. Ela é o colegiado. Em segundo lugar, ela poderia até privilegiar a colegialidade da turma da que ela faz parte, mas não quando se reúne o colegiado do qual ela faz parte, que é o órgão plenário. Esse é o momento em que tudo é colocado, é o ponto zero de discussão.
No voto do decano, o ministro Celso de Mello, ele fez um dura crítica às pressões externas, e fez uma clara referência às declarações do general Villas Bôas. Como o sr. avaliou esse voto?
O voto do ministro Celso de Mello é o que há de mais valioso nesse julgamento. Se existe algo de positivo, foi a aula que ele ministrou na noite de ontem. Queria eu que ele tivesse votado em primeiro lugar, porque isso talvez criasse um constrangimento que evitasse algumas distorções conceituais fosse feitas. No que se refere à menção dele, me parece que foi muito mais uma resposta que ele deu a algumas cobranças públicas, não só da opinião pública, de pressão midiática, mas também por parte da posição de alguns militares.
O sr. acredita que abordagem da imprensa tenha influenciado a decisão dos ministros?
Isso eu também atribuo ao ‘fator Cármen Lúcia’, no seguinte aspecto: no momento em que ela deixou chegar nesse nível de pressão em torno do julgamento, no momento em que não foram julgadas as ADCs antes, e outros habeas de anônimos, chegando ao julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula. E, principalmente, com aquela suspensão do julgamento, se criou um nível de expectativa gigantesca nesse período de uma semana, uma semana e meia. E isso gerou um espaço para a cobrança populista, popular e midiática em torno do julgamento. Deixando de lado algo muito importante: que estávamos ali fazendo uma discussão jurídica e o papel do Supremo é votar conforme a Constituição, conforme o Direito, ainda que para isso, ele tenha que votar contra a opinião da maioria.
Em dado momento, o ministro Marco Aurélio Mello acusou a presidente Cármen Lúcia de ter armado uma estratégia para evitar que as ADCs que questionam a prisão em segunda instância fosse votada antes do habeas corpus de Lula. Como o sr. vê esse tipo de intervenção de um dos ministros mais antigos da corte?
É o vice decano e se trata de uma acusação muito séria. Ele chegou a mencionar a ‘toda poderosa’, a ‘dona da pauta’, fazendo alusão exatamente a isso, ao poder de pautar ou não pautar algo, que numa situação sensível como essa podia representar muito num julgamento correto ou não, justo ou não. É uma acusação bastante séria. Inclusive ele mencionou que isso vai ficar registrado nos anais da história do Supremo, que é algo lamentável. É lamentável que se chegue nessa dimensão, quando se esperava um julgamento sem esse tipo de composição ou de pauta.
Essa decisão do STF poderia ter algum impacto sobre o sistema penitenciário que já é um dos mais populosos do planeta?
Sem dúvidas. Um dos pontos paradoxais desse julgamento é exatamente a postura esquizofrênica do Supremo. O mesmo Supremo que há alguns anos trás declarou o ‘estado inconstitucional do sistema carcerário’, ou seja, declarou que o sistema carcerário brasileiro é desumano, inconstitucional. Esse mesmo Supremo que diz que o sistema carcerário é desumano e inconstitucional, dá uma decisão que contribuirá sim para que, a médio prazo, tenhamos um inchaço, um crescimento significativo da população carcerária. E não é verdade o que foi dito ontem que ‘as prisões automáticas após decisão em segundo grau não têm impacto relevante’. Isso não é verdade. As pessoas estão sendo presas sem necessidade. Só para que fique muito claro: todos precisam compreender que sempre se pode prender alguém. É possível prender uma pessoa a qualquer momento da investigação, do processo e do recurso. Basta ter uma necessidade, ou seja, uma prisão cautelar. O que o Supremo está dizendo é que será possível ter uma execução automática de pena enquanto pende recurso de uma pessoa que não representa perigo e que não é necessária a prisão, porque se for necessária, já existe a prisão preventiva. Então é uma prisão irracional. E é claro que vai haver um crescimento da população carcerária. E mais, o nível de violência institucional necessária em relação a pessoas que dependem de julgamento, que não são perigosas e que não precisavam estar presas nesse momento.
O sr. acredita que essa decisão, considerada por vários juristas como um erro, do ponto de vista constitucional, pode ser corrigida no julgamento das ADCs?
A esperança a gente sempre tem de que a Constituição prevaleça. Agora o cenário é muito triste, muito sombrio. A última expectativa que a gente tem é de quando sejam julgadas as Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade. Mas é uma esperança que inclusive depende de mais uma instabilidade jurídica, que seria o Supremo mudar outra vez de opinião e gerar mais uma imensa discussão. Espero que mude, mas com certeza isso terá um preço alto para o país.
Edição: Diego Sartorato