Nesta semana, a Câmara de Deputados da Nação Argentina iniciou as reuniões informativas que discutirão o projeto de lei sobre a Interrupção Voluntária de Gravidez (IVE, em espanhol). Ocorridos nas últimas terça (10) e quinta-feira (12), os debates reuniram constitucionalistas, políticos, religiosos, pesquisadores, comunicadores e ativistas que defendem e criticam o projeto de lei que poderá legalizar o aborto no país.
Para Susana Chiarotti, representante argentina no Comitê de Violência de Gênero da Organização dos Estados Americanos (OEA), trata-se de um momento histórico, pois governos anteriores postergaram a discussão e o Legislativo “resistia em assumir sua responsabilidade” sobre o tema.
“Essa discussão é muito importante e diz respeito à autonomia reprodutiva de metade do país”, afirma Chiarotti, uma das expositoras favoráveis ao IVE no primeiro debate em plenário, ocorrido na terça-feira (10).
Os defensores do projeto enfatizam que o aborto é uma questão de saúde pública e um direito que garante às mulheres a autonomia reprodutiva e a maternidade não-compulsória.
“O acesso a contraceptivos e a abortos seguros fizeram com que nenhuma mulher morresse por aborto inseguro desde 2012 em Rosário”, argumentou Leonardo Caruna, secretário de saúde pública da cidade localizada na província de Santa Fé.
Os críticos ao projeto defenderam a criação de políticas públicas capazes de ajudar mulheres em situação de vulnerabilidade social que recorrem ao aborto, o que ainda não é uma realidade no país. Eles também consideraram o IVE como uma “espécie de pena de morte” que “viola artigos constitucionais”.
“São oferecidas opções para grávidas em situação de vulnerabilidade? A mulher que chega ao aborto é uma vítima mais de um sistema perverso”, questionou Alejandra Planker, professora de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica Argentina (UCA).
Construção do projeto
O projeto de lei da Interrupção Voluntária de Gravidez (IVE) foi apresentado pela primeira vez em 2005, quando foi formada no país a Campanha por Aborto Seguro, Legal e Gratuito. O grupo é composto por cerca de 500 organizações, coletivos feministas, sindicatos e partidos políticos que buscam legalizar a prática.
“O intuito não é só evitar a prisão de mulheres que decidem interromper uma gravidez, mas reconhecer o aborto como um direito, devidamente incorporado ao sistema público de saúde e acompanhado por políticas públicas”, afirma Celeste Mac Dougall, integrante da Campanha.
Segundo Camila Parodi, outra integrante da campanha, os artigos do IVE foram debatidos em fóruns e assembleias e posteriormente adaptados por juristas do grupo. A partir de reuniões nos bairros e cidades de seus integrantes, a campanha apresentou e discutiu o projeto com a sociedade civil e buscou assinaturas de apoio. “Isso mostra o alcance, o caráter popular e multidisciplinar dessa articulação”, avalia Parodi.
O projeto foi primeiramente apresentado ao Congresso por quatro deputadas de diferentes blocos políticos. Hoje, o IVE é apoiado por mais de 70.
No total, irão acontecer 14 sessões para a discussão do IVE, com a exposição de 700 especialistas em quatro comissões da Câmara dos Deputados – Legislação Geral, Saúde, Legislação Penal e Família.
As outras sessões ocorrerão em plenário às terças e quintas-feiras de abril e maio. A votação do projeto está prevista para o mês de junho.
Contexto argentino
Em discussão pela sétima vez no Congresso argentino, o aborto é permitido hoje no país até a décima-quarta semana de gestação em duas situações: quando a gravidez é fruto de estupro ou oferece riscos de vida à gestante. Ambas situações foram permitidas pela primeira vez no país em 1921, após a segunda reforma do Código Penal.
“Desde a redemocratização, 3030 mulheres morreram por abortos ilegais inseguros na Argentina”, afirma Mariana Romero, integrante do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet, em espanhol).
Segundo dados da Anistia Internacional, o aborto clandestino é a primeira causa de morte materna na Argentina. A estimativa do Ministério da Saúde é haver entre 350 e 500 mil abortos clandestinos por ano no país.
Em 2016, 254 gestantes morreram no país e 17,6% das mortes resultaram de complicações decorrentes de abortos, mas dados do Departamento de Estatísticas e Informação de Saúde (DEIS) não distinguem abortos espontâneos dos provocados.
Para feministas e integrantes da campanha, as discussões sobre o tema deixaram de ser “tabu” e a legalização vem sendo cada vez mais discutida e aceita na sociedade Argentina, o que amplia as chances do projeto de lei ser sancionado.
Susana Chiarotti diz acreditar que a opinião pública mudou muito nos últimos dez anos. “Hoje há mais gente favorável à legalização e o Poder Executivo não pode ignorar isso”. Segundo ela, até junho a OEA lembrará o Estado argentino das recomendações internacionais já feitas sobre o tema.
“Estamos oferecendo argumentos de caráter social, bioético e político para que o aborto seja legalizado. Ao ser criminalizado, ele se torna um negócio, mais caro e acessível somente para quem pode pagar por ele”, avalia Camila Parodi.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira