"O fascismo avança pelo sistema penal". Pronunciada pelo Professor Nilo Batista, essa frase, carregada de significado e projeções sombrias, deveria servir como alerta para a esquerda democrática – um sinal amarelo a indicar que estamos no início de um longo inverno autoritário.
Sinal de que há mesmo uma escalada fascista em curso e que seus sinais mais claros nos chegam hoje através da atuação do sistema de Justiça penal. A limitação do direito ao habeas corpus, a naturalização de prisões preventivas prolongadas e indefinidas e o hiper empoderamento das agências policiais são os símbolos mais eloquentes da derrocada da democracia brasileira. Embora muita gente bem intencionada ainda a negue, já entramos numa espiral descontrolada rumo ao autoritarismo.
O habeas corpus é o maior instrumento de garantia e defesa da liberdade nas sociedades civilizadas. Nenhum regime fascista do mundo conseguiu conviver com a plenitude do habeas corpus, limitado, reduzido, quando não aniquilado, sempre que um projeto político desejou prevalecer de forma ditatorial, longe das urnas.
Foi assim no Brasil do Ato Institucional número 5, lá em 1968, e está sendo assim agora, no pós-golpe de 2016. A redução do habeas corpus a um “recurso” burocrático, sujeito a regramentos processuais específicos e de dificílima compreensão, principalmente pela população leiga, não é compromisso com a luta anticorrupção. É compromisso com o desmanche do nosso sistema de direitos e garantias fundamentais, colocado em prática na perspectiva de produzir corpos dóceis e facilmente aprisionáveis.
Porque assim será bem mais fácil acabar com os direitos sociais que ainda restam e consolidar a supremacia das classes abastadas. Não há bom mocismo por trás das decisões que negam conhecimento ao habeas corpus ou que criam inúmeros obstáculos para afastar ilegalidades e abusos de poder. Há uma atuação orquestrada, com enorme apoio midiático, militar e financeiro, para destruir qualquer traço de Estado de Bem Estar Social que ousamos construir por aqui. Onde há um processo tão vergonhoso e evidente de concentração de renda e “empobrecimento da pobreza” não pode mesmo haver liberdade.
Menos habeas corpus, mais prisões preventivas arbitrárias e mais poder às instituições de que se ocupam das investigações criminais. Essa receita é infalível e desemboca, invariavelmente, na consolidação do Estado de Exceção. Excepciona-se a aplicação dos direitos e das garantias fundamentais sob a desculpa – fajuta e repetidíssima ao longo da História – de que o inimigo precisa ser combatido.
Esse inimigo já foi o povo judeu, os comunistas, os subversivos e os corruptos, dentre outros. Aliás, a eleição dos “corruptos” como inimigos de ocasião nem é algo propriamente inédito. Foi colocada em prática aqui, em terra brasilis, em 1954 (suicídio de Vargas) e em 1964 (golpe empresarial-militar). A ideia é usar um pretexto para dizer que o momento é excepcional e que, em casos assim, a sociedade deve mesmo tolerar um certo nível de flexibilização dos seus próprios direitos. A última vez que “aceitamos” um Estado de Exceção jogaram- no, goela abaixo, 21 anos de ditadura. E a exceção virou a regra.
O aplauso a pseudo lideranças autoritárias; o aplauso à transformação do Supremo Tribunal Federal numa corte de chancela do arbítrio; o aplauso à narrativa midiática comprometida (sempre e sempre) não com a verdade, mas com a notícia mais rentável; o aplauso a um Ministério Público interventor do processo eleitoral e o aplauso ao encarceramento em massa, seletivo para cima ou para baixo, são prenúncios de dias muito difíceis. Dias em que “democracia” soará como palavrão e o “mal”, de tão banalizado, reinará quase absoluto. Mas haverá (muita) resistência. Do lado de cá também tem gente boa de briga.
*Rafael Borges é advogado criminalista e diretor-secretário do Instituto Carioca de Criminologia - ICC.
Edição: Redação