Chuyma é uma palavra aymara que, segundo Silvia Rivera Cusicanqui, contempla as entranhas superiores: o pulmão, o coração. Esse é o ponto de partida das cátedras livres de Sociologia da Imagem que promove com a Colectivx Ch’ixi, da qual faz parte.
Uma ciência artesanal que se tece por meio da paixão, da respiração, daquilo que compartimos em coletivo; comprometida com a vida, porque se reconhece como parte dela. É assim que a socióloga e ativista boliviana concebe e exerce a investigação científica. Já aposentada de seu ofício de professora universitária, ela aproveita para experimentar outras formas de produção de conhecimento, que partem do visual e da oralidade, nos cursos que organiza no tambo da Colectivx Ch´ixi.
Os tambos eram e são lugares de passagem dos que vêm de diversas comunidades para os centros urbanos (que são também centros culturais, políticos e econômicos), propiciando trocas e encontros. Para o tambo dx Colectivx Ch’ixi confluem gentes e iniciativas de todo o mundo, mas especialmente de Abya Yala, esse grande continente que os colonizadores denominaram América. Gente de variadas movidas coletivas, dos ativismos sociais, da sociologia e das artes, “com um pé dentro e outro fora da academia”, como resume Silvia.
“Eu vou aprender mais com vocês do que vocês comigo, mas espero que vocês aprendam mesmo é uns com os outros”, disse ela logo após a apresentação inicial, e indicou que muitas redes se tecem entre as turmas dos cursos. Éramos mais de trinta, apertadinhos um ao lado do outro, no sotão que, apesar de não ser o espaço mais amplo do tambo, é o preferido de Silvia por ser o mais intimista e acolhedor.
O dia em que mulheres de Argentina, Brasil, Colombia, Chile, Ecuador, México, Peru e Uruguay conversaram sobre as dores, delícias e urgências do feminismo, na tarde de um sábado de trabalho no tambo
Essa foi a sétima edição do curso – na primeira, havia apenas três participantes. Atualmente, é preciso impor um limite de vagas: houve uma edição em que foram tantos inscritos que ela teve que dividi-los em duas turmas, e dar dois cursos simultâneos – experiência que ficou marcada em sua memória pelo desgaste.
A proposta da cátedra de Sociologia da Imagem é pensar com os pés na terra – pois, como preconizou Paulo Freire, “a cabeça pensa onde os pés pisam”. Em meio às complexidades planetárias, ter consciência do local, das relações à nossa volta, e pensar a partir da biorregião, mais do que das artificiais fronteiras geopolíticas. Estar presente a cada respiração, a cada batida do coração, a cada passo. Reconectar a ciência com o corpo, com a terra, com as comunidades, com a vida.
A cátedra dura pouco menos de um mês, e já no primeiro encontro Silvia propôs uma apresentação final, que poderia ser feita individual ou coletivamente, em formato de ensaio visual, instalação, vídeo, performance ou o que fosse. Indicou valorizar os retalhos, os processos, os balbuceios, na contramão do que costuma-se fazer na universidade, onde parte-se do “todo”, da teoria, do abstrato e dedutivo, sem dar lugar à paixão, à experimentação, à intuição. Isso é o que ela define como um pensamento colonizado, que dá preferência aos clássicos europeus e renega os pensamentos e saberes locais.
Descolonizar o pensamento trata-se, assim, de mirar com os próprios olhos, com nossa própria cabeça. Mais que uma teoria: um gesto. E, apesar de pautar a descolonização, ela desconfia da moda “decolonial”: os europeus tomam referências desde abajo, elaboram a matéria-prima e exportam. E a questão não é falta de outras perspectivas de produção: muita coisa já bem trabalhada nos confins do Sul global é simplesmente ignorada pela ótica erudita, de arriba e de abajo, de aqui e de acolá, pelos colonizadores e pelos colonizados – por isso a importância de descolonizarmos nossa própria mirada, assim como nosso fazer científico.
Por outro lado, ela acredita que não se trata de ignorar os clássicos do norte, mas de estabelecer uma relação crítica eu-tu, e não privilegiá-los em detrimento de outros saberes que desafiam a lógica dada. E deixou a dica de ouro a ser trabalhada ao longo do curso, que deveria ser o fio condutor do trabalho final: desenvolver a “mirada periférica”, perceber que há uma gramática de ação na realidade. Valorizar a vagância, a itinerância, olhar as coisas “sem importância”, sem olhar nada em particular. Sugeriu desconectar um pouco das telas dos celulares, que estimulam o olhar focalizado, para se abrir a essa outra maneira de ver, conjugada com os outros sentidos.
Silvia entende que as tecnologias digitais nos levam a ficar muito tempo no modo “focalizado”, o que está gerando uma espécie de perda de memória frente à imediatez do conhecimento. Já ninguém sabe números de telefone de cor, quem dirá um resumo das páginas que leu na noite anterior – quando se lê algo que não as mensagens no celular. Sua suspeita é de que estamos vivendo um encurtamento da capacidade de olhar.
Sociologia ch’ixi
A Colectivx Ch’ixi surgiu em 2008 a partir de experimentos pedagógicos suscitados por Silvia, em que se moldava uma Sociologia da Imagem mais corporal e mais política. A perspectiva coletiva é “reinscrever no microespaço social que habitamos uma arena comum para praticar formas de ‘bom governo’ e ‘bem viver’ como gestos micropolíticos de conhecimento corporal e subjetivo”, relata Silvia em Sociología de la Imagen.
Entende-se a epistemologia como ética, como um “conhecer com o corpo”, como uma autoconstrução a partir do diálogo. Uma ética que se transforma em estética, um pensar em comum que é também um fazer comum, e se plasma em livros, tecidos, plantas, comidas, fotografias; nas paredes, hortas e encontros da Colectivx.
Mas o que significa ch’ixi, afinal? Silvia explica que “ch’ixi literalmente se refiere al gris jaspeado, formado a partir de infinidad de puntos negros y blancos que se unifican para la percepción pero permanecen puros, separados. Es un modo de pensar, de hablar y de percibir que se sustentan en lo múltiple y lo contradictório, no como un estado transitorio que hay que superar (como en la dialéctica), sino como una fuerza explosiva y contenciosa, que potencia nuestra capacidad de pensamiento y acción. Se opone así a las ideas de sincretismo, hibridez y a la dialéctica de la síntesis, que siempre andan en busca de lo uno, la superación de las contradicciones a través de un tercer elemento, armonioso y completo en sí mismo”.
Em Abya Yala, onde a hegemonização se impõe através do conflito, do sufocamento das diferenças, não se pode falar de interação cultural a partir da conformidade. É antes uma dança e uma luta, em que as diferenças se influenciam, se transformam, se aproximam e se afastam, se chocam e também permanecem.
Para descolonizar o olhar é preciso conectar a vista com os outros sentidos: deshierarquizar a mirada. Trabalhar a imagem, não só o olhar, mas toda forma de representação visual. Conectar com os imaginários. Os sonhos. Com o insight, a mirada completa, desde adentro. Silvia entende que a visão permite identificar ao longe o que não se pode tocar, cheirar, o que escapa à percepção dos outros sentidos: já o insight encurta a distância a partir do coração, do corpo, e (re)aproxima de uma maneira que não se pode explicar apenas de modo racional.
Ciência com a mão na massa e os pés na terra
Os encontros da cátedra livre aconteceram todas segundas, quartas e sextas à noite. De um encontro para o outro, uma listinha de leituras nos mantinha ocupados, encurtando o tempo para passear por La Paz e andar de teleférico. Paralelamente ocorriam outros cursos – de Visualidade e poder, Interlegalidade e Pluralismo Jurídico, Vídeo comunitário e Danças bolivianas, além das oficinas que os participantes disponibilizaram, como Performance, Corpo primitivo, Yoga e Comunicação Compartilhada. Também ocorreram mostras de cine comunitário latinoamericano.
Apthapi em uma waka (lugar cerimonial ancestral, frequentemente instalado nas montanhas).
Além das discussões em cada encontro, Silvia propunha exercícios práticos e levava imagens relacionadas aos temas de leitura para analisar coletivamente. Algumas vezes pedia pra gente escrever nossa impressão sobre algo num papel e entregar para ela, além das tarefinhas de casa, como relatar um sonho que marcou, contar sobre alguma foto que não tiramos (e porquê) e fazer uma breve etnografia das saídas de campos – entre elas, a mais longa foi um passeio à Carabuco, uma cidade a cerca de três horas de La Paz. Visitamos a igreja, onde os painéis que retratam o paraíso, o purgatório e o inferno estão cheios de elementos estéticos da cosmovisão andina, como conta Silvia e a Colectivx no catálogo Principio Potosí Reverso.
Na sequência fomos à “praia”, na beira do Titicaca, esse grande lago entre Bolivia e Peru que é quase um mar – mar que faz tanta falta à Bolivia e está presente num discurso que até hoje “unifica a nação”, em memória ao despojo da saída ao oceano protagonizado pelo Chile na Guerra do Pacífico. Na volta paramos numa waka, um lugar cerimonial ancestral, frequentemente instalado nas montanhas. Silvia nos mostrou a “pedra-sapo”, que tem um enigmático olho furado, e fizemos apthapi, essa tradição andina de compartilhar alimento, em que se abre um pano no chão e cada um coloca o que tem. Sempre dá e sobra, incrível como a comida parece se multiplicar a partir da contribuição de cada um. Saudosos banquetes.
Subimos até a waka, que hoje já conta com uma cruz – Silvia relatou que da última vez que tinha vindo, não havia. Nos impressionou a quantidade de lixo das oferendas que as pessoas deixam ali – parece que o plástico faz parte do rezo. Silvia acendeu uns cigarros e entregou-os para a Pachamama, como costuma-se fazer. Lá de cima dava pra ver a Ilha do Sol e a Ilha da Lua, rodeadas pelo Titicaca.
Aos sábados o pessoal da Colectivx se reúne no tambo para trabalhar, sob as instruções do Maestroy – seja com a mão na obra, trabalhando a estrutura física, ou com o pé na terra, cultivando a horta e cuidando das plantas no viveiro. Na hora do almoço, apthapi. E assim vai se criando uma relação entre as pessoas que parte não só do pensamento, mas do trabalho manual comum e da interação com os elementos que nos rodeiam e nos conformam.
Diversidade, entranhas e experimentação: trabalhos finais da cátedra de verão
O dia 09 de fevereiro começou cedo. Dia de montar as exposições e instalações, ou de apresentar as perfomances, em grupo ou individualmente. “Essa é uma cátedra livre, ninguém é obrigado a nada”, havia dito Silvia, nos livrando da obrigação de apresentar um produto final – ou antes, um produto que representa um processo. Mas muitos fizeram, não por dever, mas por vontade.
Foram exibidos alguns vídeos, como o que trata das chifleras, mulheres medicina, rezadeiras e erveiras que podem ser encontradas na famosa “calle de las brujas” em La Paz (mas que não gostam de ser chamadas de bruxas), e outro feito a partir de um exercício colaborativo de fazer um desenho em um minuto.
Silvia observando os trabalhos no dia do encerramento
Tivemos exposições sobre processos políticos e culturais de comunidades em Abya Yala e lutas de resistência – entre elas, uma sobre as mulheres pedreiras de La Paz (que pode ser conferida parcialmente na publicação dessa entrevista que colegas fizeram com a Silvia).
Já entre as perfomances, Mboi Katari condensa processos intuivos relacionando corpo, ancestralidade e feminino numa viagem rumo ao inconsciente guiada pela serpente.
E o tambo da Colectivx ganhou um novo grafite, que ficou de presente no muro interno.
Ficamos até de noite percorrendo e comentando os trabalhos. Na sequência, festa de despedida – comida, bebida, música e fogueira. Amizades. Vidas cruzadas, planos de novas ações coletivas que se tecem, rotas de rebeldia que se encontram e se transformam.
Índia-astróloga-poeta
Quipnayra uñtasis sarnaqapxañani é um aforismo aymara no qual Silvia se inspira, que “puede traducirse aproximadamente así: ‘mirando atrás y adelante (al futuro-pasado) podemos caminar en el presente-futuro”, aunque sus significados más sutiles se pierden en la traducción”. Como o protagonista de Nación Clandestina (obra mestra do cineasta boliviano Jorge Sanjinés – que Silvia aponta como um dos precursores da Sociologia da Imagem), que percorre o caminho de volta para a sua comunidade, da qual foi expulso, encarando de frente o seu passado e carregando o futuro nas costas.
A vida como uma caminhada que envolve passado-presente-futuro de maneira não linear, ou antes cíclica, com o passado nos guiando no presente, momento em que construímos o desconhecido futuro, que não vemos, porque está atrás. Mas nos acompanha.
O passado como algo que permeia nosso cotidiano; o futuro que, ao mesmo tempo que já é, está oculto. Assim é o tempo segundo a cosmovisão andina.
No prólogo de Sociología de la Imagen, Silvia conta sua trajetória pessoal – afinal, como não partir do próprio recorrido e assumir sua subjetividade quando se trata de conhecimento construído em relação com o mundo? Sua caminhada intelectual começou com a busca da sua ancestralidade esquecida, a partir das trilhas do seu sobrenome Cusicanqui. Logo, em meio às aulas que dava na universidade, fundou coletivamente o Taller de Historia Oral Andina (THOA), onde abarcava-se elementos visuais e orais que costumam ser relegados pela academia, e que são a principal referência de muitos estudantes de origem quichwa e aymara que vêm das comunidades.
Em meio às burocracias e limitações da instituição universitária, Silvia conta que esse laboratória permitia a experimentação e a ação coletiva, politicamente comprometida e culturalmente diversa. Tanto que, em determinado momento, antes de se aposentar, Silvia foi afastada da disciplina de Sociologia da Imagem: suas práticas desafiavam o cânone científico.
Silvia também é referência quanto ao histórico das lutas anarquistas na Bolivia, dos movimentos campesinos, das lutas indígenas e dos processos de colonização e descolonização.
Assim como Silvia propulsou o surgimento da Colectivx Ch’ixi (que antes se chamava Colectivo 2), sua energia, que parece inesgotável, impulsiona aquelas que convivem com ela. Com sua extensa e intensa experiência de vida, segue transformando a si e ao mundo à sua volta, produzindo e disseminando saberes, seguindo os ciclos, cultivando a terra, incorporando cada vez mais o ideal ancestral de índia-astróloga-poeta.
*Michele Torinelli é comunicadora, caminhante e aprendiz dos saberes e relações com todas as formas de vida.
Edição: Júlia Rohden