Antonio Carlos Gomes Moreira Belchior Fontenelle Fernandes (ele brincava dizendo que era o maior nome da MPB), nascido em Sobral, região norte do estado do Ceará, desde muito cedo se dedicou à música e alçou voos inimagináveis para um “rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior.”
Inúmeras matérias e análises sobre seu legado foram feitas nos últimos dias em jornais e blogs do país, mas gostaria de destacar, em mais um texto/homenagem, a dimensão política das letras do autor, sobretudo, se pensarmos nos desafios históricos da constituição do Brasil enquanto país-nação e sobre os caminhos para chegarmos a esta utopia.
Sem desconsiderar a densidade e complexidade estético-literária-filosófica que perpassa o conjunto de seu trabalho musical, avalio que o ponto de ligação e coerência da sua obra é a política. Esta compreendida também, em perspectiva gramsciana, enquanto cultura (visão de mundo, moral, valores e posição sobre a realidade).
Essa afirmação pode ser constatada desde seus primeiros discos, em assertivas e metáforas que demarcam explicitamente o sofrimento e a luta do povo brasileiro, “gente honesta, boa e comovida, que caminha para a morte pensando em vencer na vida”; no sentimento de latino americanidade, “para que o sol apareça sobre a América do Sul”; na denúncia contra a ganância das elites, já que “a única forma que pode ser norma é nenhuma regra ter, é nunca fazer nada que o mestre mandar, sempre desobedecer, nunca reverenciar” e na esperança que o “novo sempre vem” contra as várias formas de asceticismo e conservadorismo. Posição escrita e entoada de forma contundente, mas nada panfletária, arraigada por um lirismo e sensibilidade singulares, “canto torto feito faca”.
Postura compreendida pela própria identidade entre criador e criatura. De uma vida sertaneja e suburbana, membro de uma família com duas dezenas de filhos, um “jovem que desceu do norte e no sul viveu na rua” e teve que enfrentar uma “metrópole violenta que extermina os miseráveis, negros párias, teus meninos”. Nas memórias infantis de cantadores e de uma densa formação cristã, quando ainda “havia galos, noites e quintais”, “numa terra onde o céu é o próprio chão”.
No estudo de línguas e medicina e da fome e frio sentidos na pele, “com diploma de sofrer de outra universidade, com fala nordestina e querendo esquecer o francês”. No sucesso e admiração profunda de fãs e músicos e pela necessidade da reclusão e do reencontro consigo mesmo, como quem está “sempre em perigo e a vida sempre está por um triz, com um coração delinquente juvenil, suicida, sensível demais”.
Belchior, de forma universal e particular carregou e traduziu a alma e a voz de um povo, até a morte. Numa realidade marcada pela “violência, trogloditas, traficantes, neonazistas, farsantes, barbárie, devastação”, seu eco torna-se cada vez mais atual e necessário para edificação de uma pátria soberana, popular e “brasileiramente linda”.
As frases entre aspas foram retiradas, e em algumas com pequenas alterações, das seguintes canções, respectivamente: Apenas um rapaz latino americano; Pequeno perfil de um cidadão comum; Voz da América; Como o diabo gosta; Como os nosso pais; A palo seco; Fotografia 3x4; Baihuno; Galos, noites e quintais; Carisma; Tudo outra vez; Brincando com a vida; Baihuno, Brasileiramente linda.
* Pedro Silva é militante da Consulta Popular e professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE)
Edição: Diego Sartorato