Desde 1824, pouco depois que se instaura a independência do Brasil, o país passa a ser regido por duas Constituições e isso atravessa toda a monarquia e os períodos de regime republicano, chegando aos dias de hoje. É o que acredita o jurista Fábio Konder Comparato. Para ele, essa é a razão pela qual até hoje se vive uma espécie de arranjo democrático. “Nunca fomos uma autêntica democracia, no sentido original da palavra na língua de Homero, porque entre nós o poder supremo, ou seja, a soberania jamais pertenceu ao povo (demos)”, destaca. Ou seja, sempre tivemos uma Constituição, por vezes muito bem-acabada, enquanto peça legal, e outra, como um código velado, que de fato funcionava na prática.
É o que chama de a Constituição “oficial” e a “subliminar”. A segunda sempre esteve focada na manutenção dos poderes de uma elite que até mesmo usava da própria “constituição oficial” para assegurar sua dominação. “Até mesmo durante os regimes autoritários ou ditatoriais, fizemos questão de promulgar uma Constituição. Assim foi em 10 de novembro de 1937 para justificar a instituição do Estado Novo getulista, e em 24 de janeiro de 1967 em pleno regime militar”, acrescenta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Comparato destaca que nem todo processo constituinte que culminou na Carta Magna de 1988 foi capaz de romper com essa lógica. “Tratou-se, pura e simplesmente, de mais uma dissimulação política, dentre as inúmeras que tivemos em toda a nossa História, sempre com acentos de retórica. Em 1988, a Constituição simbólica tinha que enfatizar a soberania popular e os direitos humanos, para contrastar com o regime militar”, analisa. E recomenda: “o que este país precisa não é uma simples reforma constitucional, mas uma mudança de poder soberano, com o abandono da tradição oligárquica e uma profunda reforma de costumes”.
Fábio Konder Comparato possui graduação em Direito pela Universidade de São Paulo - USP e doutorado em Direito pela Université Paris 1. É professor Emérito da Faculdade de Direito da USP e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, e especialista em Filosofia do Direito, Direitos Humanos e Direito Político. É também titular da Medalha Rui Barbosa, conferida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
Comparato é autor dos artigos Brasil: A dialética da dissimulação, Cadernos IHU ideias, nº. 239, e O poder judiciário no Brasil, Cadernos IHU ideias, n°.222.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que paradigma de democracia foi pensado ao longo do processo de formulação da Constituição Federal de 1988?
Fábio Konder Comparato – A Constituição atual seguiu o paradigma da de 1946, com aperfeiçoamentos em matéria de direitos humanos e instituições de democracia direta, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular legislativa. Mas se tais instituições têm sido levadas a sério é outra história.
Como podemos compreender nossa atual construção democrática?
É preciso entender que sempre tivemos duas Constituições: a oficial e a subliminar. Essa duplicidade começou em 1824, logo após a Independência, quando promulgamos nossa primeira Constituição. Como bem assinalou Sérgio Buarque de Holanda [1], “dificilmente se podem compreender os traços dominantes da política imperial, sem ter em conta a presença de uma Constituição ‘não escrita’ que, com a complacência dos dois partidos, se sobrepõe em geral à Carta de 1824 e ao mesmo tempo vai solapá-la”.
Esse sistema de duplicidade constitucional vigorou desde então, sem cessar. Até mesmo durante os regimes autoritários ou ditatoriais, fizemos questão de promulgar uma Constituição. Assim foi em 10 de novembro de 1937 para justificar a instituição do Estado Novo getulista, e em 24 de janeiro de 1967 em pleno regime militar, iniciado com o golpe de 1964. Em ambos os regimes tivemos “constituições”. Os governantes todo-poderosos fizeram, aliás, questão de modificá-las inúmeras vezes, até mesmo por Decreto-Lei, chegando inclusive a introduzir pelo chamado Ato Institucional nº 5 um regime de terrorismo de Estado. O que não impediu seus redatores de exagerar no cinismo, declarando na introdução desse ato que a assim chamada “Revolução de 31 de março de 1964” institucionalizou uma “autêntica ordem democrática, baseada na liberdade e no respeito à dignidade da pessoa humana”.
Como compreender a cooptação feita pela histórica oligarquia nacional ao que foi pensado para ser a “Constituição Cidadã”?
Tratou-se, pura e simplesmente, de mais uma dissimulação política, dentre as inúmeras que tivemos em toda a nossa História, sempre com acentos de retórica. Em 1988, a Constituição simbólica tinha que enfatizar a soberania popular e os direitos humanos, para contrastar com o regime militar.
Quais as maiores lacunas da Constituição?
Cito duas grandes lacunas da Constituição, ou seja, normas constitucionais que exigem a promulgação de lei complementar para terem vigência efetiva, lei essa cuja votação continua “esquecida” pelo Congresso Nacional, quase 30 anos depois de promulgada a Constituição. A primeira é o imposto sobre grandes fortunas, previsto no art.153, inciso VII. A segunda é a proibição de monopólio ou oligopólio, direto ou indireto, dos meios de comunicação social (art. 220, § 5º). Por óbvia coincidência, ambas as lacunas dizem respeito a interesses diretos da camada oligárquica.
Como o senhor avalia o sistema político brasileiro? Esse sistema solidifica ou falseia o conceito de república, baseada na representação democrática?
A Constituição de 1988 abre-se com a proclamação solene de que “a República Federativa do Brasil, (...) constitui-se em Estado Democrático de Direito”. Infelizmente, até hoje não instituímos uma autêntica República nem muito menos um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Não instituímos uma autêntica república, no sentido que os romanos davam à expressão res publica, porque como já dizia frei Vicente do Salvador, em seu livro de 1627, “nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. Nunca fomos uma autêntica democracia, no sentido original da palavra na língua de Homero, porque entre nós o poder supremo, ou seja, a soberania jamais pertenceu ao povo (demos).
E, para completar o vazio político, tampouco chegamos a instituir um Estado de Direito, no qual todo poder decorre do Direito e não da vontade humana, ainda que seja de todo o povo.
Nas Memórias de um Sargento de Milícias, há um episódio famoso que bem define entre nós a predominância do poder pessoal da autoridade. Querendo livrar seu jovem afilhado do castigo que lhe impusera o major Vidigal, a comadre protetora foi procurá-lo, e ele, querendo atalhar a conversa, foi logo dizendo:
“– Já sei de tudo, já sei de tudo.
– Ainda não, senhor major, observou a comadre, ainda não sabe do melhor e é que o que ele praticou naquela ocasião quase que não estava nas suas mãos. Bem sabe que um filho na casa de seu pai...
– Mas um filho quando é soldado, retorquiu o major com toda gravidade disciplinar...
– Nem por isso deixa de ser filho, tornou Dona Maria.
– Bem sei, mas a lei?
– Ora, a lei... o que é a lei, se o Senhor major quiser?...
O major sorriu-se com cândida modéstia”.
Há fatos que revelam certo esgotamento do projeto da Carta Magna? Quais?
Lamento dizê-lo, mas o que este país precisa não é uma simples reforma constitucional, mas uma mudança de poder soberano, com o abandono da tradição oligárquica e uma profunda reforma de costumes. Em sua viagem famosa a bordo do Beagle, entre 1831 e 1836, Charles Darwin permaneceu algum tempo no Brasil. Sua apreciação sobre nossos costumes foi devastadora: “Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados”.
Segundo a Constituição, o Poder Judiciário tem a capacidade de intervir quando houver lesão ou ameaça a direitos. Como avalia a forma que o Judiciário hoje vem exercendo esse papel?
O Poder Judiciário não tem apenas a capacidade de intervir quando houver lesão ou ameaça a direitos. Ele tem o dever de fazê-lo, sob pena de prevaricação.
Edição: Diego Sartorato