A ação violenta promovida por pistoleiros no sul do Pará não poupou nem as crianças. Na sexta-feira, dia 4, um grupo de 10 famílias de agricultores, que estavam acampadas às margens do rio Araguaia, em São João do Araguaia, foram vítimas de tortura e ordenadas a sair do estado. O caso ocorreu faltando poucos dias para completar um ano o massacre de Pau D’Arco, que vitimou 10 acampados na fazenda Santa Lúcia, durante ação policial.
De acordo com informações da Comissão Pastoral da Terra (CPT), os pistoleiros estavam fortemente armados e usavam capuz para esconder a identidade. Eles chegaram ao local onde as famílias estavam em duas caminhonetes. Além dos adultos, entre eles uma mulher grávida de três meses, haviam 11 crianças no acampamento, com faixa de três meses e 10 anos de idade.
Segundo o historiador Airton dos Reis Pereira, professor na Universidade do Estado do Pará (UEPA), “não existe pistoleiro que age por conta própria”. A pistolagem é uma prática de ação violenta que tem como característica a remuneração paga por um mandante, o poder do mando remonta aos grandes proprietários de terra ainda da época do império. A herança dessa ação violenta pode esclarecer porque é forte a presença de pistoleiros no sul e sudeste do Pará, regiões onde há “grupos poderosos de fazendeiros” e destaca que a impunidade é outro fator que colabora com a engrenagem de crimes no campo.
“Há uma outra peça da engrenagem que é o poder público, porque se não existisse a impunidade, e a impunidade ela só existe porque nós temos uma morosidade e uma certa omissão do estado, das instituições públicas, então por isso continua se perpetuando”, completa.
O professor cita diversos casos de lideranças de movimentos populares assassinatos por pistoleiros a mando de fazendeiros como Expedito Ribeiro e João Canuto de Oliveira, em épocas diferentes, foram presidentes do Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Rio Maria. João Canuto foi morto em 1985, mas os mandantes foram condenados pela Justiça paraense em 2003, depois de 18 anos do episódio.
Os trabalhadores relataram a CPT que durante uma hora sofreram uma sessão de torturas, nem as crianças foram poupadas. “Os adultos foram espancados a golpes de paus, facões e coronhadas. As marcas ficaram espalhadas pelos corpos dos trabalhadores. Os pistoleiros dispararam suas armas próximo do ouvido de duas crianças gêmeas de 3 meses de idade para aterrorizar sua mãe. Atiraram em redes com crianças dentro, além de derrubarem e pisotearem crianças no chão. Uma das mães que estava grávida, que também foi pisoteada, teve sangramento e pode ter sido vítima de aborto”, informa a CPT.
Segundo a nota os pistoleiros atearam fogo nos barracos. Após a sessão de torturas as famílias foram obrigadas a subir na carroceria das duas caminhonetes levando apenas a roupa do corpo, sendo abandonados na Vila Santana, localizada às margens da Rodovia Transamazônica, a cerca de 30 km do local do acampamento onde as famílias estavam.
A Comissão ainda informou que esse grupo de sem-terra juntamente com outras famílias, por ordem do juiz da Vara Agrária de Marabá, haviam sido despejados em janeiro desse ano da Fazenda Esperantina, de propriedade da siderúrgica SIDENORTE Marabá. Sem ter para onde ir esse grupo de dez famílias decidiram acampar às margens do rio Araguaia – terrenos de marinha, logo da união – distante cerca de 10km dos limites da fazenda, mas a ordem dada aos pistoleiros para as famílias era que o grupo saísse do Pará e fosse para o Tocantins.
Sofisticação da violência
A CPT, organismo ligado a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ao longo dos anos registra os casos de violência no campo. José Batista, advogado e coordenador da CPT em Marabá, analisa que a prática da pistolagem tem apresentado outros formatos: antes havia uma atuação mais individualizada, uma pistolagem tradicional, atualmente os crimes contra trabalhadores sem-terra tem envolvido ações de grupos sejam transvestidos de seguranças sejam de milícias rurais.
“Tanto tem o pistoleiro tradicional, que ainda continua em ação, tem as empresas de segurança que são contratadas junto com grupos de pistoleiros para fazer as ações violentas e tem milícias armadas que são grupos que não tem vínculo com empresas de segurança, que são essencialmente pistoleiros que geralmente, quando a polícia vai a fazenda , são apresentados como funcionários da fazenda, vaqueiro etc., mas na verdade funciona como milícias, grupos armados a serviço dos latifundiários”.
Para além dessas categorias, Batista ainda fala que existem pessoas identificadas na região que fazem o agenciamento de pistoleiros, uma espécie de “empresários do crime” e que são “encarregados de estabelecerem contatos com proprietários de terras e oferecer o serviço de pistolagem àqueles que têm interesse em contatar”. Ele também pontua uma outra característica forte dessa ação violenta: a participação de policias militares em crimes contra sem-terra e afirma que o atual cenário político tem contribuído com a pistolagem no Pará.
“Em função do quadro político atual a uma conivência do poder público a uma facilitação que acaba favorecendo a disseminação desses grupos armados no campo e nessa região aqui do sul e sudeste do Pará é uma região historicamente que tem sido palco de muita violência praticada por pistoleiros, essa prática continua em curso nos dias atuais e ganhando força pra ações de natureza mais coletiva por parte do latifúndio”, argumenta.
Para o professor a pistolagem é um grande sistema alimentado também nos discursos carregados de preconceito contra o sem-terra por parte de agentes do estado que coadunam com o pensamento de grandes fazendeiros da região.
“O preconceito contra os trabalhadores rurais para alguns agentes do estado ainda é visível, então o trabalhador muitas vezes é taxado como preguiçoso, como 'Zé povinho' que não paga imposto, que invade terra, que quer a terra para vender, que não produz, você vai ver no linguajar da polícia que esse preconceito está muito próximo”, diz.
A violência contra as famílias de trabalhadores rurais em São João do Araguaia está sendo investigado pela Delegacia de Conflitos Agrários (Deca) de Marabá, Batista relatou que o delegado esteve na área, intimou algumas pessoas e ainda está coletando depoimentos do restante do grupo, nem todos puderam ir à delegacia no final de semanas por falta de condições financeiras. Na terça-feira (8) havia dois agricultores que ainda estavam prestando depoimento em Marabá e fizeram exame de corpo de delito.
Edição: Juca Guimarães