Desde 2014, o segundo domingo do mês de maio, data em que se comemora o Dia das Mães, ganhou significado de luta para a carioca Ana Paula Oliveira. Na próxima segunda-feira (14), o assassinato de seu filho, Jonathan de Oliveira Lima, completa quatro anos.
“É uma data que, infelizmente, o comércio manipula, mas é importante ter um dia especial para celebrar; quando a gente perde um filho, principalmente no mês de maio, fica bastante pesado, difícil de se encarar”, relatou.
Jonathan foi morto aos 19 anos por policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de Manguinhos, no Rio de Janeiro (RJ), com um tiro nas costas. A versão oficial é que o rapaz teria trocado tiros com os PMs.
“Senti como se eles estivessem matando meu filho de novo. Não basta só matar: tem que criminalizar, trocar as versões do que realmente aconteceu. E a gente vê isso, infelizmente, não só no Rio de Janeiro, mas em vários lugares do Brasil”, disse Ana Paula.
A partir do ocorrido, ela começou uma busca por Justiça pelo assassinato, que ainda não foi julgado. “Quando a gente tem um filho arrastado do nosso convívio, a gente vai sendo levada por busca por justiça; por perpetuar a memória deles. É muito importante que mais pessoas conheçam e tenham entendimento que todos os dias são jovens mortos pelo simples motivo de serem pobres, negros e da periferia”, afirmou.
Assim como ela, outras mães transformaram em militância a dor da perda prematura e injusta de seus filhos e encontram refúgio na empatia de uma rede de mulheres por todo o país.
Se antes não compreendiam o funcionamento do Poder Judiciário, elas passaram a frequentar audiências no Ministério Público; se achavam que não compreendiam nada sobre política, hoje encabeçam manifestações e discursam em microfones nas ruas. É o que conta Rute Fiúza.
Rute é mãe do adolescente Davi Fiúza, que sumiu após uma ação da Polícia Militar da Bahia no bairro de São Cristóvão, em Salvador, em outubro de 2014. Ele tinha 16 anos.
“Eu estava muito na minha zona de conforto. Eu trabalhava no varejo, do trabalho para a casa. Mas eu via o que acontecia, eu me sensibilizava. Mas aí é diferente quando ocorre com a gente”, disse em entrevista ao Brasil de Fato.
“Até então, eu não entendia nada, não sabia como funcionava nada. Inclusive, eu achava que eu era uma pessoa muito frágil. Eu não sabia que eu era tão forte. O desaparecimento dele me despertou.”
Era das chacinas
Uma das articulações mais conhecidas no Brasil é o Movimento Mães de Maio, de familiares das vítimas de ataques, envolvendo forças do Estado. A série de assassinatos vitimou mais de 500 pessoas em menos de dez dias em 2006. Eles ocorreram em uma suposta represália à ofensiva do Primeiro Comando da Capital (PCC) após a transferência de seus líderes
Hoje, mais do que a busca por justiça aos próprios filhos, o movimento ampliou para a denúncia e o combate aos crimes do Estado ocorridos durante o período democrático, a “Era das Chacinas”.
Débora Maria da Silva é uma das fundadoras do movimento. Ela chegou a ser hospitalizada após a morte de Edson Rogério da Silva. O rapaz, que trabalhava como gari, foi assassinado aos 29 anos no dia 15 de maio de 2006, depois de uma abordagem policial.
“Quando meu menino morreu, a gente viu uma conexão, pela mídia, dos crimes. Uma semelhança muito contundente: encapuzados, que vinham de moto com garupa. Todos os crimes foram quase na mesma pegada”, lembrou.
Na baixada santista, litoral de São Paulo, Débora foi atrás de familiares de outras vítimas e se articularam para denunciar os abusos da Polícia Militar. Passaram a ir aos órgãos públicos, como a Ouvidoria da Polícia MIlitar de São Paulo e o Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana (Condepe), na capital paulista.
“Eu nunca tinha subido para São Paulo. Eu era uma dona de casa que tinha aprendido só a cuidar dos meus filhos. Mas eu aceitei o desafio e vim”, disse.
Foi em uma reunião no Condepe que Débora conheceu a jornalista Rose Nogueira, autora do livro Crimes de Maio. Rose apresentou à ela a obra e também a luta das Madres de Plaza de Mayo, que denunciam os desaparecidos durante a ditadura militar na Argentina.
“Eu não conseguia ler o livro. Eu não queria encontrar o nome do meu filho ali, eu não aceitava. Mas eu olhava assim no vagão e fechava. Eu passei quase três meses para abrir o livro e achar o nome do meu filho. Ali eu vi o tamanho dessa luta. E depois eu fui pesquisar as Madres [da Plaza de Mayo] a fundo.”
Outro exemplo de luta para elas foram as Mães de Acari, que se organizaram nos anos 1990 após a chacina em Magé, estado do Rio de Janeiro, que matou 11 jovens.
Hoje, Débora viaja o Brasil e o mundo para trocar experiências com mulheres que passaram pela mesma perda. Ela também é integrante de um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que investiga os crimes de maio de 2006 no estado. Para Débora, a denúncia da truculência policial e do genocídio da população negra é uma missão deixada por seu filho.
Encontro nacional
Para trocar experiências e propor ações em âmbito nacional, as mães realizam em Salvador (BA), na próxima quarta-feira (16), III Encontro da Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado.
A novidade deste ano é o caráter internacional: integrantes de coletivos dos EUA, da Colômbia e da Palestina terão representantes no evento.
As primeiras edições do encontro ocorreram em São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente. Para Rute Fiúza, que vive na capital baiana, levar o evento ao Nordeste amplia o debate para outras regiões do país.
“Esse encontro, na verdade, é para que se dê visibilidade ao que acontece também fora do eixo Rio-São Paulo. Aqui também tem chacinas e mortos pelo Estado todos os dias”, disse.
Em Fortaleza (CE), por exemplo, um toque de recolher imposto pela PM no bairro do Curió, em 2015, mudou a vida da cuidadora de idosos Edna Carla. Seu filho, o estudante Álef Cavalcante, de 17 anos, estava na rua com amigos e foi executado no que se tornou conhecido como a Chacina do Curió.
“Eu não fui para luta logo. Passei três meses sem fazer nada. Eu só chorava e lamentava”, relatou.
Álef sonhava em entrar no Exército e ser militar, como o avô. “Em nosso estado, em nosso país, temos várias mães órfãs. Você sabe que naquele dia das mães seu filho não vai chegar para dizer 'Mãe, eu te amo'. Essa mãe vai fechar a porta e ele não vai entrar. É uma luta muita grande.”
Nóis por nóis
Para Ana Paula Oliveira, o apoio das mães é o fortalecimento que elas encontram em si mesmas. “Estampar a foto dos nossos filhos no nosso peito e busca justiça pela memória deles e pela verdade dos fatos é uma forma da gente continuar exercendo nossa maternidade. Quando tenho a oportunidade de estar com outras mães, dizer que nossa luta vem dando resultado”, declarou.
No caso de seu filho, depois de um ano, um dos policiais envolvidos no caso foi afastado de Manguinhos, local onde ela ainda vive.
As mulheres relatam que a rede também é importante psicologicamente, já que a luta para comprovar a inocência de seus filhos pode ser árdua e extenuante, como afirma Rute Fiúza.
“Eu tive síndrome do pânico. Antes eu achava que essas coisas eram pura frescura, na minha ignorância. Hoje eu sou prova viva e eu luto constantemente contra a depressão”, relatou.
No dia 3 de maio, Vera Lúcia Gonzaga, outra fundadora do Movimento Mães de Maio, faleceu. Ela foi encontrada morta em sua casa, na periferia de Santos, litoral paulista. Vera perdeu seu genro, Eddie Joey Oliveira, e sua filha, Ana Paula Gongaza dos Santos, que estava grávida de nove meses, durante os crimes de maio de 2006.
Sua morte é vista no movimento como mais uma consequência dos crimes de maio de 2006, afirma Débora Silva. “A morte da Vera abre um leque para mostrar que não são só nossos filhos que estão morrendo. As doenças oportunistas, o câncer estão acabando com essas mulheres; com seus órgãos reprodutores. Ela foi vítima de um sistema perverso”.
Vera será homenageada no primeiro dia do encontro nacional das mães em Salvador. Sua história e outros perfis de mães são relatados no livro Mães em luta – dez anos dos crimes de Maio de 2006, publicado nem 2016 e organizado pela Ponte Jornalismo.
Edição: Tayguara Ribeiro