Quando a filósofa Marcia Tiburi e o jornalista José Trajano visitaram a Universidade Federal de São Carlos para participar da Feira do Livro da editora universitária, nos dias 8 e 9 de maio, e, sobretudo, para falarem em defesa da democracia, talvez não soubessem do que estava em curso na UFSCar. Pouco depois de ter almoçado no restaurante do sindicato dos docentes, Trajano talvez não tenha tido tempo de se deparar com a passeata de mais de cem estudantes da universidade que passaram por ali para protestar contra o aumento de 122% no preço de outro restaurante, o universitário, onde a maior parte dos estudantes faz suas refeições. O protesto, para além do valor salgado do bandejão, era contra a falta de diálogo ou negociação por parte da reitora Wanda Hoffmann que, intransigente, colocou a questão em termos de “ou se aumenta o valor da refeição ou o restaurante fecha”. Os estudantes do campus Sorocaba já ocupavam dois prédios da universidade em protesto desde a segunda-feira. Marcia Tiburi, que falou em São Carlos sobre Feminismo em tempos fascistas, dificilmente imaginaria que a segunda reitora mulher da UFSCar, dois dias depois, protagonizaria um dos episódios mais lamentáveis da história da universidade.
Na noite da quarta-feira, dia 9 de maio, dando prosseguimento aos protestos, os estudantes decidiram fazer uma vigília em frente ao prédio da reitoria e, na manhã seguinte, trancaram o edifício para impedir o acesso dos servidores, como forma de forçar a negociação. Diante da irredutibilidade da reitora, cerca de cinquenta estudantes optaram por ocupar o edifício de forma pacífica. No dia seguinte, em apoio ao movimento, diversos docentes ministraram suas aulas no saguão da reitoria. Ocupações em universidades consistem em recurso extremo que, regra geral, levam à negociação entre as partes, como ocorreu na própria UFSCar, por questões relativas à moradia estudantil, há dois anos. A universidade pública brasileira, após as políticas de inclusão da última década e meia, que tem permitido o ingresso de estudantes que antes não tinham acesso ao ensino superior, tem se deparado com o desafio da permanência estudantil. O episódio de São Carlos era, até este momento, um caso típico destes, a ser resolvido com diálogo. Porém, a reitora, inflexível, recorreu à força, optando por um caminho desastroso.
Ao cair da noite desta sexta-feira, dia 11, o campus universitário foi surpreendido pela presença de um agente da polícia federal acompanhado de oficiais de justiça, de posse de um Mandado de Intimação e Reintegração, que transformava em réus sete universitários, os quais eram intimados “a desocuparem o imóvel, devendo, a desocupação, ocorrer ao ato da intimação, sendo autorizada a requisição de força policial para tanto”. A viatura da Polícia Federal chegou quase ao mesmo tempo que veículos de imprensa, enquanto, a poucos metros, findava-se uma improvisada festa de aniversário para a reitora, numa reunião esvaziada do Conselho Deliberativo da Fundação de Apoio Institucional, no auditório cedido pelo presidente do sindicado dos docentes.
Membros da equipe de gestão ainda se empanturravam de bolo quando os alunos que reivindicavam uma política de permanência compatível eram acossados pelo agente da polícia federal, que informava aos docentes presentes: “Eles vão sair, na pior das hipóteses, que ninguém quer, é com a PM. Se vão sair, por que não sair antes? (...) Com violência não há quem não saia, né? Ninguém quer. Então deixando isso claro para eles: Vocês vão ter que sair, com violência ou não. Com violência embasada em lei. Com probabilidade de dano físico e piora na situação criminal ainda.”
A reitora não se fez presente em nenhum momento. Quem assumiu o papel de mediação foram docentes preocupados com a integridade física dos universitários pois, como deixara claro o agente federal, o evento poderia derivar para a violência. A iminência do confronto se dissipou quando os alunos resolveram desocupar o prédio, diante da possibilidade de ver o numero de réus subir de 7 para 50, pois o juiz federal determinava que os oficiais de justiça deveriam “indicar e individualizar possíveis invasores não mencionados na inicial, no ato da constatação.”
Se no Brasil de 2018, o estudante que ingressa na universidade por políticas afirmativas é tratado pela reitora, pela justiça e pela polícia como “invasor”, parece-nos que de fato é preciso que as universidades sejam mais e mais invadidas e ocupadas, para que se possa garantir seu estatuto de lócus de reflexão social, pratica acadêmica e política. Para que elas possam ser espaços de construção democrática, não de truculência e exceção. Com brios, com organização, os estudantes se retiraram, sob fortes e prolongados aplausos de membros da comunidade acadêmica – professores, estudantes, técnicos-administrativos – que se encontravam do lado de fora. Depositaram seus colchões e mantas diante do edifício e deixaram o interior incólume, e cantaram, uma vez mais, suas reivindicações.
Apesar da desocupação, da ausência de qualquer dano ao patrimônio, os sete universitários agora enfrentam a condição de réus. Além da dificuldade imposta pela política draconiana de preços do seu alimento diário, terão que se haver também com a justiça federal. A reitora, conta-se, viajou para Portugal, tendo escrito a – até agora – pior página da sua gestão a frente da reitoria, na destrambelhada condução da questão. Espera-se que o Conselho Universitário da UFSCar se manifeste quanto às decisões de sua mandatária, que embora tenha entrado num avião com as unhas sujas de bolo, esteve na iminência de tê-las manchadas de sangue.
Edição: Tayguara Ribeiro