As idas e vindas dos municípios do interior até Recife, a capital de Pernambuco, costumam ser difíceis para muitas das “mães de micro”, que se deslocam em busca de reabilitação fisioterapêutica para seus filhos e filhas. Ana Roberta, uma dessas mães, poderia lançar um livro só de histórias que já enfrentou em suas viagens na companhia de Laura, sua filha que convive desde 2015 com a síndrome congênita do Zika vírus.
Certa vez, o carro quebrou no meio da estrada; em outra viagem, o ar condicionado parou de funcionar em um típico engarrafamento do Recife e a janela não abria de jeito nenhum; outro dia, inclusive, o motorista deixou, covardemente, as duas passageiras para trás.
De sua cidade para Recife são aproximadamente 65 km. Somado ao tempo do trânsito da capital - o mais engarrafado do país pelo segundo ano consecutivo - e o tempo gasto à espera por passageiras da região que também utilizam o transporte que a prefeitura disponibiliza neste município, calculam-se em média três horas de viagem, ou seja, no total seis horas contabilizadas no “tempo de viagem” de mãe e filha.
O transporte foi concedido pela prefeitura, depois de muitas reivindicações por parte dessas mães, justamente pela dificuldade que enfrentavam ao circular nos ônibus com seus bebês. Mas essa conquista não é total, já que não significa que todas as mães usufruam dele, sua qualidade varia de município para município e de acordo com “a boa vontade” da prefeitura municipal e seus funcionários em prestar o serviço.
Rotina
Geralmente Ana Roberta se prepara para viajar um dia antes. À noite, ela arruma a mochila da filha, coloca seus documentos, as fraldas, uma roupinha extra e deixa tudo pronto para as horas seguintes. Ela vai dormir às 22h da e acorda às 3h da manhã para tomar café e banho. Às quatro da manhã, o motorista do transporte, está à sua espera no portão de casa – isso quando não atrasa. Juntas, Laura e Ana Roberta chegam aos centros de reabilitação recifenses em torno das 7h, às vezes mais cedo. Costumam retornar às 16h, chegando naquele mesmo dia, às 19h em casa.
Das histórias de viagem que Ana Roberta me conta quando nos encontramos uma do início desse ano me deixou engasgada de choro. Nessa ocasião, ela fez o que costuma fazer em dias de viagem: preparou mochila, documentos, fralda, comida. Dessa vez, Laura estava com um probleminha no olho e a mãe tinha conseguido uma consulta de última hora na Fundação Altino Ventura, uma renomada instituição oftalmológica da cidade.
Mesmo Ana Roberta tendo avisado ao motorista, por telefone, que iria demorar um pouco mais na instituição no final daquela tarde, o motorista arbitrariamente seguiu viagem de volta sem mãe e filha. Quando Ana Roberta percebeu a situação, após terminar a consulta da pequena, acionou às pressas a assistente social do local. A assistente chegou a contatar a pessoa responsável pelo transporte da prefeitura da cidade natal dessa “mãe de micro”, mas foi informada de que nada podia ser feito a respeito.
Ana só conseguiu recorrer à uma casa de apoio que acolhe pessoas de fora do Estado, depois de muito esforço, para passarem a noite. Ela conta ter entrado em desespero, primeiro, pela falta de sensibilidade do motorista e, segundo, porque previa que o remédio e a comida de Laura fossem acabar, já que na mochila da viagem, ela costuma levar apenas as quantias exatas de medicamento e alimento.
A caminhada até a casa de apoio durou quarenta minutos a pé, no sol escaldante da capital. Durante a noite: leite frio, crises convulsivas, choro e mais choro. Laura, assim como a maioria dos bebês nessas condições, tem outros reflexos da síndrome congênita do Zika vírus além da microcefalia, e o remédio que toma para controlar as crises é o Depakene, um anticonvulsivante. Em suas palavras, “esse foi o pior dia da vida”.
No dia seguinte, sem ter dormido, ela estava em demasiada exaustão. Ainda assim, seguiu até o hospital de referência em busca de remédios - o Instituto de Medicina Integralizada de Pernambuco (IMIP). Ela caminhou cerca de trinta minutos com a filha no colo e as bolsas nas costas. O anticonvulsivante estava em falta nessa unidade de atendimento. Ana Roberta entrou em desespero e, pela primeira vez na vida, pediu dinheiro na rua para, ao menos, alimentar Laura.
Sem apoio
Quando nós nos encontramos, ela comentou comigo: “Foi horrível, Raquel, foi horrível. As pessoas me olhavam e comentavam que eu estava usando a criança para pedir dinheiro, eu consegui R$ 4 e foi o que deu para comprar uma papinha pra ela. E olha que a comida estava perto da data de validade. Foi muito humilhante, eu nunca pensei que ia passar por isso em toda minha vida. Como pode isso, Raquel? Como eu ia imaginar que não ia voltar para casa naquele dia? Que apoio é esse que dizem que dão para gente?”.
Na volta à Fundação Altino Ventura, Ana Roberta conseguiu contatar outra assistente social que, por sua vez, lhe pagou o almoço e pediu ao motorista do dia que a buscasse no local. E só conseguiu chegar em casa às 20h. Deitou-se na cama com uma vontade imensa de desistir. Mas pensou: “Eu só não desisto, porque sei que a minha filha precisa”.
Depois das denúncias feitas por Ana Roberta a respeito do caso, o motorista foi afastado do trabalho. Contudo, ela ainda guarda o trauma das 37 horas que passou fora de casa nas condições mencionadas. As últimas palavras de Ana Roberta nesse dia em que conversamos me lançaram outro olhar sobre suas viagens e sobre a epidemia do Zika: “Você que gosta tanto de escrever, anota aí: ‘Ana Roberta era uma mãe que só ficava em casa cuidando dos filhos, agora Ana Roberta é uma viajante’”.
* Raquel Lustosa é Antropóloga da UFPE e esse é um dos textos produzidos no âmbito do projeto de pesquisa: “Zika e microcefalia: Um estudo antropológico sobre os impactos dos diagnósticos e prognósticos das malformações fetais no cotidiano de mulheres e suas famílias no estado de Pernambuco”. Os textos partem de histórias marcantes e intensas que nos foram relatadas por jovens mulheres da Grande Recife que estão, no momento, vivendo a maternidade de crianças com a síndrome congênita do vírus Zika. Esse projeto de pesquisa vem acontecendo desde 2016, com visitas semestrais à capital pernambucana. É coordenado pela Professora Soraya Fleischer do Departamento de Antropologia/Universidade de Brasília.
Edição: Monyse Ravena