Se dependesse da Federação Internacional de Futebol (FIFA), o palco mais importante da Copa do Mundo de 2018 teria sido demolido.
O Estádio Luzhniki, em Moscou, será palco dos jogos de abertura e de encerramento do Mundial. Construir um estádio novo com capacidade de 80 mil espectadores e fazer adaptações nas áreas de imprensa e recepção de convidados eram algumas das exigências da FIFA ao governo russo (Clique aqui para conferir o especial Brasil de Fato na Copa).
“Nossa missão é corrigir essas deficiências”, disse Vitali Mutko, então ministro dos Esportes da Rússia, em entrevista coletiva em dezembro de 2012. “Mas o importante é que o Luzhniki se mantenha uma instalação esportiva”.
Em vez de destruir um patrimônio da era soviética e substituí-lo por uma arena “padrão FIFA”, as autoridades locais resistiram à pressão e decidiram modernizar o complexo esportivo de Luzhniki. Os enormes painéis com imagens de esportes olímpicos, que decoram a entrada principal, e a estátua de mármore do ex-chefe de governo Vladimir Lênin, que deu nome ao estádio até 1980, continuam onde sempre estiveram.
Histórico
Inaugurado em 1956, o Luzhniki era chamado de Estádio Central Lênin em homenagem ao principal líder da revolução comunista de 1917, e recebia jogos amistosos da Seleção da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O recorde de público foi registrado num amistoso entre URSS e Itália, em 1963, assistido por 102,5 mil pessoas.
O complexo esportivo foi reformado para as Olimpíadas de 1980 em Moscou e passou a ser chamado de Estádio Luzhniki. Os Estados Unidos e seus aliados boicotaram aquele evento por conta da Guerra Fria, e discordavam da presença bélica da URSS no Afeganistão. Delegações de 69 países deixaram de enviar atletas aos Jogos.
Durante a cerimônia de encerramento, no Luzhniki, o mascote do evento, ursinho Misha, derramou uma "lágrima” em uma coreografia de placas distribuídas a voluntários na plateia. A imagem do choro de Misha é uma das mais icônicas da história das Olimpíadas.
Além de jogos de futebol, o complexo esportivo Luzhniki recebe competições de atletismo, hipismo, pentatlo e rugby. Em 2008, o estádio sediou a final da Liga dos Campeões disputada entre os times ingleses Chelsea e Manchester United.
Impasse
Em 2013, o Luzhniki fechou para reformas. Entre as mudanças realizadas para atender as exigências da FIFA estava o aumento da capacidade, de 78 para 80 mil espectadores, a instalação de cabos, telões e outros recursos tecnológicos que permitissem o uso do árbitro de vídeo e o monitoramento por câmeras de segurança, além de mudanças na inclinação das arquibancadas.
O ângulo foi alterado para melhorar o campo de visão dos torcedores, em especial os das dez primeiras fileiras.
A decisão de não demolir o Estádio Luzhniki foi bancada pelo prefeito de Moscou, Sergei Sobyanin. Segundo o argumento dele, o novo projeto do complexo esportivo deveria atender as mudanças solicitadas pela FIFA, mas preservar a fachada histórica. Assim, o Luzhniki manteve os contornos externos em forma de arco, projetados durante o período soviético.
Cerca de 1,2 mil operários trabalharam na reforma, que teve um custo de R$ 1,8 bilhão – quase R$ 600 mil a mais que a do Maracanã. A obra terminou em 2017, mas até hoje se ouve o ruído de picaretas e tratores no entorno do complexo esportivo. Dia e noite, dezenas de trabalhadores dão os últimos retoques na estrutura para o jogo de abertura da Copa, entre Rússia e Arábia Saudita, no dia 14 de junho.
Para Roman Shirokov, meio-campo da Seleção russa, preservar a fachada histórica do estádio foi uma decisão acertada. “Será um novo estádio, mas continuará a manter o significado que existe para tantas pessoas”, disse em entrevista divulgada no ano passado.
A reforma do complexo Luzhniki não ocorreu apenas no estádio: a área de mais de 200 hectares inclui três campos de treinamento, um centro para prática de esportes aquáticos, e há um projeto para construção de um centro de tênis. Mais de mil árvores foram plantadas ao redor do estádio.
Memória
Quem chega ao estádio Luzhniki de transporte público a partir da região central de Moscou vê de longe a estátua de Lênin. A imagem do líder da Revolução de Outubro remete ao legado da URSS e traz consigo a lembrança de uma época gloriosa para o esporte.
A delegação soviética venceu seis das nove Olimpíadas que disputou. O atleta Lev Yashin, filiado ao Partido Comunista, foi o primeiro e único goleiro a ganhar uma Bola de Ouro de melhor jogador de futebol da temporada, em 1963.
O melhor desempenho da URSS em Copas do Mundo foi um quarto lugar, em 1966. A Rússia, após a abertura para o capitalismo, nunca passou da primeira fase da competição.
Abusos recorrentes
A sugestão de demolir o Luzhniki, patrimônio da história soviética, segue a tendência das últimas Copas do Mundo: em nome de interesses mercadológicos, a FIFA impõe uma lista de exigências aos municípios como condicionante para realização do torneio, a despeito da opinião pública e das legislações locais.
No Brasil, em 2014, a chamada Lei Geral da Copa suspendeu um artigo do Estatuto do Torcedor que desde 2010 proibia o consumo de bebida alcoólica nos estádios. A cerveja seria liberada durante o Mundial; mas não qualquer cerveja. O objetivo da FIFA era permitir a venda apenas de produtos da marca Budweiser, com quem tinha um contrato milionário de patrocínio.
“A FIFA, suas empresas subsidiárias e as prestadoras de serviço, passam direta ou indiretamente por sua ingerência, sem ostentar instrumentos transparentes ou sujeitos a uma regulação concorrencial pelo Estado”, critica o advogado Bruno Fraga Pistinizi, mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP, em artigo publicado na revista Gestão e Conhecimento, em novembro de 2012.
Conforme a Lei Geral da Copa, foi criada uma zona de exclusão de dois quilômetros no entorno dos estádios, dentro da qual apenas as empresas escolhidas pela FIFA poderiam funcionar.
Durante a Copa da Rússia, uma das polêmicas provocadas pela entidade foi o anúncio de uma festa de torcedores ao lado do prédio principal da Universidade Estatal de Moscou. Os estudantes entregaram ao reitor um abaixo-assinado com quase 15 mil assinaturas para tentar impedir a realização da chamada “Fan Fest” ao lado de seus dormitórios em meio ao período letivo.
Edição: Diego Sartorato