"Crise do sistema penitenciário" foi desta forma que a maioria dos veículos da imprensa corporativa descreveu os massacres em presídios de Manaus (AM), Boa Vista (RR) e Natal (RN), ocorridos em janeiro do ano passado. À época, após uma série de rebeliões desencadeadas ao longo de 14 dias, 119 pessoas sob a custódia do Estado perderam as vidas nos presídios.
Para analisar a forma como a mídia reporta casos de grave desrespeito aos direitos humanos como esses, o relatório "Narrativas Brancas, Mortes Negras" selecionou a cobertura do jornal paulistano Folha de S.Paulo como caso de estudo.
A análise foi realizada pelos portais Alma Preta e Ponte Jornalismo, além da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD) e do Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC-USP), e revela como a escolha de termos e fontes pode enviesar o produto jornalístico de forma a omitir um grave drama humano sob a terminologia fria e burocrática de uma "crise do sistema".
É o que explica Pedro Borges, jornalista e pesquisador do Portal Alma Preta. "A partir daí, dessa enumeração [de termos e fontes], a gente traçou um pouco desse perfil sobre qual seria o posicionamento da Folha sobre o tema em questão".
Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), acredita que o estudo reafirmou a maneira tendenciosa com que a grande mídia retrata assuntos que tangenciam a população negra do Brasil.
"O estudo demonstrou que a esmagadora maioria das fontes consultadas eram fontes da polícia, do governo, a versão chapa branca oficial da rebelião, e não houve um contraponto. Organizações de direitos humanos e familiares de detentos ou foram ouvidos muito pouco ou sequer foram ouvidos", afirma.
Racismo institucional
Silenciar a questão racial, de acordo com o estudo, é marca registrada da cobertura da Folha. "O dado que chama mais atenção na pesquisa do ponto de vista das palavras é a ausência da palavra negro. Ela é citada apenas uma vez durante toda a cobertura", ressalta Borges.
Atualmente, no Brasil, mais de 60% dos presos são negros, dado que varia de acordo com as regiões do país. Em Manaus, por exemplo, 71,7% da população presa é negra; em Roraima, são 82,2%; e, no Rio Grande do Norte, 69,5%. Os dados são do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen 2014).
Para ativistas de direitos humanos e pesquisadores do tema de segurança pública, o sistema carcerário é uma das faces mais cruéis do racismo institucional. E a palavra "crise", por exemplo, como a Folha enquadrou os acontecimentos de janeiro de 2017, seria, também, falaciosa, uma vez que deixa subentendido que os massacres decorreram de uma fase ruim de um sistema que geralmente funciona, ponto questionado pela pesquisa.
O estudo aponta também que a não-humanidade dos sujeitos encarcerados foi central na cobertura da Folha. Palavras relacionadas a barbárie como "massacre" e "decapitação" apareceram 236 vezes. Já palavras relacionadas à solução do problema como "superlotação" e "privatização" apareceram apenas 28 vezes.
Superencarceramento
Nathalia Oliveira, da INNPD, destaca que, mesmo quando o jornal tratou de superlotação e privatização do sistema, o fez em tentativa de vender a "solução" de criar mais vagas nas cadeias. Nathalia, por outro lado, acredita que a solução de conflitos na sociedade deve passar cada vez menos pelo encarceramento, posição compartilhada por especialistas e entidades ligadas aos direitos humanos.
"Primeiro porque é uma violência muito grande, desmedida, contra sujeitos que cometeram pequenos delitos. E ela vai servindo para criar um processo de superencarceramento, sobretudo entre pessoas negras e pobres".
Hoje, 28% da população carcerária está presa por tráfico de drogas. Esse número chega a 68% nos presídios femininos, afirma a pesquisa. A atual política de guerra às drogas, que infla as cadeias foi tema pouco explorado na cobertura da Folha.
"Porque se não é o racismo que justifica uma maior presença de pessoas negras no sistema carcerário, o que é? Seriam as pessoas negras mais propensas ao crime? Essa é uma resposta que está na boca do senso comum, que tem um fundamento racista muito forte", pondera Borges.
O jornalista acredita que, ao não racializar o debate, a Folha fortalece o racismo da sociedade, pois permite, mesmo por omissão, que o pensamento racista fique subentendido em seu noticiário.
A pesquisa será lançada nesta quarta-feira, às 19h na Casa do Baixo Augusta, à Rua Rêgo Freitas, 553, Vila Buarque, São Paulo. Confira o evento de convite para o lançamento de "Narrativas Brancas, Mortes Negras" no Facebook.
Outro lado
A reportagem do Brasil de Fato entrou em contato, por e-mail, com a ombusdman da Folha, Paula Cesarino Costa, sobre o conteúdo publicado no jornal e a linha editorial nos casos que envolve grave desrespeito aos direitos humanos.
Na Folha, a ombusdman é a responsável pelo diálogo com o leitores e seus questionamentos, além de fazer a análise crítica das reportagens.
Até o fechamento desta reportagem, às 15h30 desta terça (22), a ombusdman não respondeu as perguntas do Brasil de Fato.
Edição: Diego Sartorato