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Tribunal Permanente dos Povos examina crimes da Turquia contra curdos; entenda

Sentença do TPP em relação aos assassinatos e crimes cometidos contra o povo curdo de 2015 a 2017 saem em 24/5

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Cidade de Cizre foi destruída "em silêncio" pelo Estado turco.
Cidade de Cizre foi destruída "em silêncio" pelo Estado turco. - Nedim Yılmaz via Flickr/Creative Commons

O Tribunal Permanente dos Povos reuniu-se nas ruas parisienses, mais precisamente, na Place de la Republique, nos dias 15 e 16 de março. A localização não é acidental: lá está localizado um dos prédios onde as primeiras assembleias dos trabalhadores parisienses foram realizadas, quando as organizações sindicais começavam a se organizar.

As datas foram particularmente significativas, dado que nos mesmos dias a Turquia estava envolvida no ataque direto à cidade de Afrin (enclave curdo de Rojava), com todas as questões que esse processo trouxe. Um processo cujo conteúdo provou ser essencial para mostrar ao mundo uma das verdades que ninguém parece querer ou talvez ter a coragem de ouvir ou olhar.

Por que uma sessão tribunal sobre crimes cometidos pela Turquia no Curdistão turco?

A Turquia não assinou o Estatuto de Roma, de forma que o Tribunal Penal Internacional não tem jurisdição sobre os crimes cometidos por este Estado e a perspectiva do Conselho de Segurança das Nações Unidas discutir a intervenção do Tribunal Penal Internacional neste caso específico não é realista. Assim, não há nenhum órgão oficial do judiciário para exercer jurisdição sobre os crimes cometidos na Turquia pelo Estado turco.

O Tribunal Permanente dos Povos (TPP) é, portanto, o único sujeito a ter o interesse e a possibilidade de abrir um julgamento sobre esses crimes. O TPP nasceu em 1979 e, nestas décadas de trabalho, conseguiu manter vivo e efetivar o direito de autodeterminação dos povos.

Centenas de civis foram mortos pelo Estado turco em enclaves curdos (Foto: Nedim Yılmaz via Flickr/Creative Commons)

Essa sessão do tribunal, imediatamente após a conclusão da sessão em Paris sobre violações dos direitos dos migrantes e refugiados, se aprofundou e trouxe detalhes sobre a negação dos direitos do povo curdo que vive na Turquia em termos políticos, culturais, sociais e econômicos. Apoiou-se na acusação de que estas violações do direito à autodeterminação dos curdos são a fonte do conflito que tem sido travado entre o Estado turco e o povo curdo durante décadas.

Cizre: uma cidade destruída em silêncio

O júri, composto por 7 juízes, foi, portanto, chamado a se expressar sobre uma série de crimes.

Apesar da história recente nos dizer de operações contínuas realizadas pelo Estado turco, após a tentativa de golpe, para silenciar todos os dissidentes como a prisão de advogados e jornalistas, demissões em massa de professores em universidades e funcionários na administração pública, fechamento dos jornais, o TPP decidiu enfatizar o que aconteceu em algumas cidades de maioria curdas da Turquia.

Nas eleições nacionais de junho de 2015, o AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento, liderado por Erdogan) perdeu a sua maioria absoluta na orientação do governo e, pela primeira vez, o HDP (Partido Democrático Popular) entrou no Parlamento, superando o limiar de barreira de 10% e conseguindo obter 81 deputados. Desde então, o Processo de Paz, iniciado em 2013 entre o governo turco e o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), está sendo congelado. E uma série de eventos, incluindo o ataque na cidade de Diyarbakir (considerada a capital curda) na véspera da votação, e o ataque na cidade de Suruç, em 20 de julho, levou a uma escalada do conflito. As forças de segurança bombardeiam as bases do PKK no norte do Iraque em julho de 2015 e uma série de prisões em massa contra jornalistas, intelectuais e ativistas curdos se dá no mesmo período. Diante dessa situação, algumas administrações municipais curdas no sul da Turquia declararam uma forma de autogoverno. Entre essas cidades, Cizre, uma cidade de cerca de 120 mil pessoas no Sudeste da Anatólia, onde 93% da população votou no HDP, foi vítima de uma repressão sangrenta, da qual o público deve ser informado. Como resposta à declaração de autogoverno do município, o governo turco instituiu um toque de recolher na cidade. De 4 a 12 de setembro de 2015, Cizre foi cercada por forças de segurança, eletricidade e água foram cortadas e forças militares e policiais especiais entraram nas ruas da cidade, matando 22 pessoas.

A Human Rights Association (IHD) e a Fundação para os Direitos Humanos da Turquia (THIV) denunciaram imediatamente uma série de crimes, enquanto as preocupações expressas pela Comissão dos Direitos Humanos do Conselho da Europa nas semanas seguintes foram em vão. As eleições foram repetidas em 1 de novembro de 2015, e, apesar da participação significativamente diminuída, o HDP ainda era capaz de entrar no parlamento. Isso levou o AKP a formar uma aliança com o MHP, um partido nacionalista, para ter uma maioria absoluta e continuar seu programa de reforma institucional, lançado já na legislatura anterior.

Após essa segunda eleição, houve uma nova militarização do território, que empregou 6.182 soldados e 7.889 policiais (segundo fontes do governo) nas operações subsequentes.

Em 14 de dezembro de 2015, iniciou-se o segundo toque de recolher, que durou 79 dias e terminou apenas em 3 de março de 2016.

Homem lamenta a destruição de sua casa pelo Exército da Turquia (Foto: Nedim Yılmaz via Flickr/Creative Commons)

Na sessão do Tribunal, ouviram-se testemunhas diretas dos fatos em questão, que nos contaram em detalhes o clima de terror que se respirava naqueles dias pelas ruas da cidade. Ouvimos áudios em que os gritos dos cidadãos são ouvidos pelas execuções perpetuadas pelas forças armadas turcas. Um vídeo apresentado mostra claramente como as forças policiais especiais continuaram a atirar em cidadãos desarmados, que tentavam recolher os feridos da rua com uma bandeira branca. Ouvimos testemunhos e recolhemos declarações públicas de oficiais da República da Turquia, bem como alegações contínuas de Ahmet Davutoğlu, então primeiro-ministro de Erdogan, e do próprio presidente da República elogiando a "limpeza" que teria sido feita nesses territórios.

Enquanto as provas eram mostradas, aumentava o espanto na sala e a indignação das pessoas presentes crescia a cada declaração que revelava um crime: o uso de hospitais e escolas como quartéis generais, com atiradores nos telhados, e obstáculos criados para impedir a passagem para as ambulâncias no atendimento dos feridos.

Os crimes comuns

As ações militares que ocorreram entre 2015 e 2017 envolveram 11 cidades no Curdistão turco, 289 toques de recolher declarados oficialmente e cerca de 1,8 milhão de residentes forçados a migrar pelo Estado turco.

Alguns distritos de Diyarbakir, patrimônio cultural e natural da Unesco, foram praticamente arrasados.

De acordo com um relatório do THIV, apenas entre agosto de 2015 e abril 2016, foram mortos 338 civis na região, incluindo 78 crianças, 69 mulheres.

Um dos crimes mais horríveis apresentados no Tribunal foi a morte de 143 pessoas em três porões, na cidade de Cizre, em janeiro e fevereiro de 2016. Os civis, a fim de defender-se de ataques de artilharia militares que se tornavam cada vez mais violentos, decidiram se abrigar em porões. Todos os três abrigos foram inicialmente cercados por policiais, em seguida, foram atingidos por artilharia pesada e as pessoas que se abrigavam neles foram mortas de maneira deliberada. Foi um processo de execuções sumárias. Um crime de guerra brutal de uma violência sem precedentes.

O Primeiro Ministro, o Ministro do Interior e o Ministro da Defesa estavam cientes do que estava acontecendo naquele momento.

Especificamente, os crimes contestados pela acusação podem ser divididos em duas categorias. Primeiramente, crimes de guerra cometidos na cidade de Cizre. Em particular, algumas graves violações das Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, conforme definido pelo art. 8º, capítulo 2º, inciso (a), do Estatuto de Roma, a saber: mortes voluntárias; tortura ou tratamento desumano, incluindo experiências biológicas; causar intencionalmente sofrimento severo ou ferimentos graves ao corpo ou à saúde; destruição e apropriação de bens, não justificados por necessidades militares e executados ilegalmente e arbitrariamente.

Assim como, no caso de um conflito armado que não seja de natureza internacional, graves violações do artigo 3º, comum às quatro Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, como definido pelo art. 8º, capítulo 2º, Inciso (c) do Estatuto de Roma, ou seja, qualquer um dos seguintes atos cometidos contra pessoas que não estão participando ativamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto as armas e as pessoas colocadas para combater a doença, ferimento, detenção, ou qualquer outra causa: violência à vida e à pessoa, em particular homicídio de qualquer tipo, mutilação, tratamento cruel e tortura.

Assim como outras graves violações das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados não de natureza internacional, no âmbito estabelecido pelo direito internacional, conforme definido pelo art. 8º, capítulo 2º, Inciso (e) do Estatuto de Roma, isto é, um dos seguintes atos: dirigir intencionalmente ataques contra a população civil como tal ou contra civis individuais que não participam diretamente das hostilidades; dirigir intencionalmente ataques contra pessoal, instalações, material, unidades ou veículos envolvidos em uma missão de assistência humanitária ou de manutenção da paz em conformidade com a Carta das Nações Unidas, desde que tenham direito à proteção conferida aos civis ou aos bens civis sob a lei internacional de conflito armado; ordenar a circulação da população civil por razões relacionadas ao conflito, a menos que a segurança dos civis envolvidos ou razões militares imperativas o exijam; destruir ou tomar posse da propriedade de um oponente, a menos que tal destruição ou sequestro seja imperativamente exigido pelas necessidades do conflito.

Em segundo lugar, crimes de Estado e crimes violentos instigados pelo Estado comprometido com o objetivo de intimidar gravemente a população curda e desestabilizar ou destruir os legítimos representantes de instituições de curdos que vivem na Turquia, a fim de privar o povo curdo do seu direito à autodeterminação. O Estado turco deve ser responsabilizados por esses crimes, entre os quais podemos citar: a chamada ação “bandeira falsa”, ataques que os operadores do Estado turcos cometeram contra civis que foram atribuídos ao PKK. O objetivo dessas ações era duplo: disseminar o medo entre a população e demonizar o PKK, criando a falsa impressão de que essa organização era responsável por tais crimes.

Finalmente, o Estado turco organizou ou cometeu tais crimes no território nacional turco, mas também exportou essa atividade em outros países, como o assassinato de três mulheres curdas em Paris em 9 de janeiro de 2013. As investigações mostraram claramente implicações de altos oficiais turcos pertencentes ao Serviço Secreto do país.

Mais de 1,8 milhões de turcos foram forçados a migrar pela ação violenta da Turquia. (Foto: Nedim Yılmaz via Flickr/Creative Commons)

Turquia é culpada

As motivações da sentença sairão em 24 de maio, mas os juízes já concordaram que a violação do direito de autodeterminação do povo curdo é a causa desse conflito. Um conflito que deve, portanto, ser considerado um conflito armado não internacional, conforme definido pelo direito internacional e não como uma operação policial contra o terrorismo, como alegado pelo Estado turco. O júri reconheceu a existência de crimes de guerra e crimes de Estado cometidos pelo Estado turco contra a população curda.

Portanto, o Estado turco deve ser responsabilizado por esta operação com base nos princípios da responsabilidade do Estado por atos internacionalmente desvantajosos, conforme estabelecido pela Comissão de Direito Internacional e anexas à Resolução da Assembleia Geral 56/83 das Nações Unidas em 12 de dezembro de 2001.

O mesmo Estado turco que acaba de ser financiado pela União Europeia com um pagamento de 3 bilhões de dólares pela gestão dos fluxos migratórios. O mesmo Estado que enviou a segurança das forças especiais - os mesmos protagonistas da devastação de Cizre e Nusaybin - para conquistar a cidade de Afrin, para acabar com a experiência de autogestão pela federação municipal do norte da Síria com uma maioria curda e tudo que ela representa. Essa mesma Turquia que permitiu por anos a travessia imperturbada de suas fronteiras para os aspirantes a jihadistas, proporcionando-lhes assistência médica. A mesma Turquia, cujo presidente Erdogan é recebido com honras de todos os chefes de Estado e governos do mundo.

Este processo trouxe, assim, contradições e muitas verdades não ditas, que delineam um futuro preocupante.

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira