Em um cenário de polarização e irracionalidade, para evitarmos interpretações equivocadas, duas advertências são necessárias.
(1) Há uma dimensão histórico-estrutural na atual crise que eclodiu com a “greve dos caminhoneiros” (entre aspas porque a expressão não retrata perfeitamente toda a complexidade do fenômeno), que compreende desde passado colonial até a presente globalização financeira.
(2) O PT tem grande responsabilidade pelo que está ocorrendo, qualquer que seja o aspecto que se queira enfatizar: corrupção, erros na política econômica ou aliança com os interesses do grande capital combinada com a ausência de reformas estruturais quando esteve no poder. Dito isto, espero ser possível propor um diálogo crítico sobre o que está ocorrendo nesses dias.
A Petrobras estava em crise devido a uma combinação de corrupção, opções políticas (política de preços) e decisões político-administrativas (programas de expansão etc.). A resposta pós-impeachment foi radicalmente neoliberal: escolha de um “técnico” com confiança do “mercado” para presidir a empresa (Pedro Parente, também conhecido como “Ministro do apagão”), livre flutuação dos preços dos combustíveis, conforme as variações do mercado internacional, e venda de setores da empresa considerados não-lucrativos. Consequências: a empresa tem alguma melhoria em suas condições econômico-financeiras, seus acionistas passam a obter altíssima rentabilidade em seus investimentos e os preços dos combustíveis explodem, tornando-se social, econômica e politicamente insustentáveis.
Temos, então, a “greve dos caminhoneiros”, envolvendo tanto demandas legítimas como interesses nem tão legítimos que aproveitam (ou constroem) uma oportunidade para lucrar econômica ou politicamente. E qual a resposta do “desgoverno Temer”: o “neoliberalismo à brasileira”, ou seja, intervenção do Estado para garantir a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos. A redução dos tributos sobre os combustíveis e de seu próprio preço pela Petrobras será bancada com dinheiro da União (acionista majoritário), preservando-se os interesses dos acionistas minoritários (do “mercado”).
A União, por sua vez, já em profunda crise fiscal, obterá recursos para tanto de duas formas: aumento de outros tributos e do endividamento público. Como a estrutura tributária brasileira é extremamente injusta, os mais pobres, a classe média assalariada, pequenos e médios empresários é que vão pagar o grosso da conta. Por sua vez, o aumento do endividamento público, com os juros pagos para os que investem nos títulos públicos, aprofunda a transferência de renda do trabalho e da produção para o capital.
E qual a alternativa? Em primeiro lugar, a alternativa não é uma intervenção militar, ideia estúpida, tanto em termos políticos como econômicos: a história de nossos 21 anos de ditadura civil-militar é suficiente para demonstrar isso. Também não se trata de um problema de “gestão eficiente” do Estado, ou alguém está feliz com o trabalho do Pedro Parente? O problema é político, trata-se de enfrentar para valer a desigualdade brasileira (coisa que o PT não fez: houve ações paliativas relevantes, mas não mudanças estruturais).
A alternativa passa por uma transformação na estrutura tributária e orçamentária brasileira: eliminar privilégios que alguns chamam de direitos (não só do setor público); reduzir a tributação sobre o salário, o consumo e a produção; e aumentar radicalmente a tributação sobre as altas rendas, o capital financeiro, as grandes fortunas e as grandes heranças.
Este debate não está no centro da agenda pública, poucos candidatos à Presidência da República ousam enfrentá-lo, e mesmo que algum deles chegue ao poder, temos grandes chances de eleger um Congresso Nacional ainda mais dominado por interesses corporativos, financeiros e lideranças “midiáticas” (em sentido amplo), com amplas possibilidades de chantagear o (a) Presidente, e precária capacidade de realizar a mediação institucional que lhe caberia (inclusive em razão da implosão do já fragmentado sistema partidário brasileiro).
Assim, temos uma tendência ao aprofundamento do caos, inclusive para além das eleições de outubro. Há forças sociais organizadas com capacidade para reverter essa tendência? E as universidades, que papel têm desempenhado ou poderiam desempenhar? São algumas questões para outra conversa.
* Murilo Gaspardo é professor e diretor-eleito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP, no campus de Franca, no interior de São Paulo. Gaspardo é doutor em Direito do Estado pela USP.
Edição: Juca Guimarães