O Estado se torna mínimo para conter e possibilitar a voracidade do capital
Por Patrick Mariano*
O número de pessoas em situação de extrema pobreza no país passou de 13,34 milhões em 2016 para 14,83 milhões no ano passado, o que significa um aumento de 11,2%. É o que demonstra o levantamento da LCA Consultores, a partir dos microdados da Pnad Contínua, divulgada pelo IBGE. Com o resultado, o contingente de pessoas extremamente pobres representava 7,2% da população brasileira em 2017, acima dos 6,5% no ano anterior.
No dia 17 de maio, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou seu relatório anual sobre os conflitos no campo. Ano após ano, a publicação desse estudo fornece para os estudiosos, sociedade em geral e autoridades públicas, um retrato acabado da tragédia humana no meio rural brasileiro, composta pela mistura de sangue, terra, vida e morte de centenas de homens e mulheres.
O número de trabalhadores mortos no campo saltou de 50 para 61 em comparação com o ano passado, um aumento de 22%. Essas mortes se relacionam e, por vezes, se entrecruzam com outros dados significativos: os conflitos registrados no Brasil aumentaram de 1.217, em 2015, para 1.536, em 2016, o que representa um aumento de 26%. Desse total, 1.079 resultaram em violência. De acordo com a CPT, é a estatística mais elevada desde quando a pesquisa começou a ser feita, em 1985.
O documento revela, ainda, que do total de conflitos, 1.295 estão relacionados à luta pela terra, incluindo desde situações de despejo e ameaça até os casos de morte. Outros 172 são disputas por água – maior número desde quando a CPT começou a catalogar esses casos específicos, em 2002. Além disso, houve 69 conflitos referentes a questões trabalhistas, sendo 68 deles somente ocorrências de trabalho escravo.
Houve aumento da repressão do Estado contra trabalhadores. O número de pessoas encarceradas por conflitos no campo passou de 80 para 228, o que representa um aumento de 185%. Além disso, as ameaças de prisão saltaram de 49 para 265 – uma diferença de 441%.
O problema da questão agrária no Brasil está diretamente ligado à injusta distribuição da propriedade da terra, em um país cuja formação territorial tem a nódoa indelével da escravidão. O abolicionista Joaquim Nabuco, em célebre discurso publicado em 1884, já vaticinava de que nada adiantaria acabar com a escravidão se permanecesse intacta a estrutura fundiária que a sustentava.
O vaticínio de Nabuco se mostra cada vez mais presente na realidade brasileira. Ao mesmo tempo em que a concentração da propriedade da terra não diminuiu, a violência direta de proprietários conta não somente com a anuência do Estado, como em certas oportunidades divide o protagonismo no papel ativo contra esses homens e mulheres, vítimas de um sistema econômico que os oprime, aprisiona e assassina.
No meio urbano, no ano de 2017, 5.012 pessoas foram mortas por policiais no Brasil – 790 a mais que em 2016. A Anistia Internacional analisou o perfil dos homicídios decorrentes de intervenção policial no Rio de Janeiro, entre 2010 e 2013, e conclui que 99,5% das vítimas são homens, 79,1% são negros e pardos e 75% são jovens (entre 15 e 29 anos). A letalidade da polícia brasileira tem um destinatário preciso e identificável, portanto: jovem, pobre e negro.
Embora a abordagem desses números deva ser feita com evidente diferenciação quanto às causas e origens da violência praticada pelo Estado é possível realizar essa interface tendo como foco o modo de produção capitalista.
Ao mesmo tempo que se expulsa milhares de trabalhadores da terra por falta de oportunidades, reforma agrária e condições mínimas e estruturais de vida; as grandes cidades as recebem em condições não menos cruéis: a precarização do trabalho, falta de oportunidades e condições dignas de vida e a repressão de órgão de segurança do Estado. Vale aqui a poesia de Belchior:
Em cada esquina que eu passava um guarda me parava / Pedia os meus documentos e depois sorria / Examinando o 3x4 da fotografia / E estranhando o nome do lugar de onde eu vinha / Pois o que pesa no Norte, pela lei da gravidade / Disso Newton já sabia: cai no Sul, grande cidade / São Paulo violento, corre o Rio que me engana
Importante analisar esses dados à luz do golpe parlamentar de 2016. A ruptura democrática que depôs Dilma Rousseff deu ainda mais protagonismo político a setores como proprietários de terra e os ligados a órgãos de repressão. Essa ascensão conservadora possibilitou e tem possibilitado o desmonte de mecanismos estatais mínimos de dissenso de conflitos como a Ouvidoria Agrária, Secretaria de Direitos Humanos, muitos dessas estruturas criadas depois de tragédias como o massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará.
Da mesma forma, se já não havia mecanismos de controle da atividade policial, muitas leis aprovadas nos últimos anos impedem qualquer forma de controle e responsabilização de integrantes de forças policiais e das Forças Armadas por crimes cometidos contra civis. Um exemplo é a concessão desde 13 de outubro de 2017 do foro privilegiado a militares das Forças Armadas que praticam crimes dolosos contra a vida de civis, embora a Constituição de 1988 confira competência exclusiva ao Tribunal do Júri nestes casos.
Não faz muito tempo que dezenas de viaturas novas do IBAMA, entregues em região rural do Estado do Pará, foram incendiadas por proprietários de terra. O capital trabalha numa via de duplo sentido: ao mesmo tempo em que disputa as benesses de créditos e se assenhora de terras devolutas, não quer nenhuma presença do Estado para controlar, regular e sequer intermediar conflitos sociais.
Todos esses números revelam uma contraditória relação: o Estado se torna mínimo para conter e possibilitar a voracidade do capital. E máximo na repressão para manutenção das desigualdades e das nódoas históricas causadas por ele.
*Patrick Mariano Gomes é advogado, integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap) e mestrando em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília (UnB).
Edição: Simone Freire