Chovia fino no dia 7 de junho deste ano quando Valdely Moraes de Souza, 36 anos, viu sua casa de madeira ser destruída no lote de assentamento rural situado na Ilha dos Carás, em Afuá (PA), por homens que cumpriam ordem judicial do juiz da vara única da comarca. O município integra a região do Marajó, arquipélago flúvio-marítimo no Pará.
Ela, o esposo, Rubenilson Monteiro da Costa, e os setes filhos, são beneficiários da reforma agrária e vivem há décadas na ilha. O Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Ilha dos Carás foi criado pelo Incra em 2008, e, portanto, não há qualquer irregularidade na ocupação daquelas terras.
No entanto, uma equipe de policiais da cidade de Breves liderada por um oficial de justiça foi até o lote onde vivia a família de Valdely para cumprir uma determinação da Justiça de desocupação, em favor de Arlete Abdon dos Santos Moreira e Jorge Teixeira Moreira. De acordo com informações do processo judicial nº 0178194-30.2015.8.14.0002, ambos residem em Macapá, no Amapá.
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A Superintendência Regional do Incra no Pará (SR-01) se manifestou por meio de nota e afirma que a Comarca de Afuá não comunicou o órgão sobre as reintegrações de posse que estavam em curso, “procedimento normalmente adotado pelas instâncias do Judiciário estadual em se tratando de áreas de reforma agrária”.
Valdely e Rubenilson estiveram nesta semana em Belém para denunciar ao Ministério Público Federal (MPF), Incra e Secretaria de Patrimônio da União (SPU) a situação em que se encontram.
A reportagem do Brasil de Fato acompanhou a audiência na sede da autarquia de regularização fundiária e conversou com Valdely. Muito emocionada, ela conta que o momento mais triste foi quando os filhos chegaram da escola e viram a casa no chão.
Munida de coragem, ela ainda filmou toda ação do despejo, da retirada dos seus poucos móveis, roupas, brinquedos dos filhos, até o momento que viu sua casa ser derrubada. Valdely e a família agora esperam por justiça.
“Eu espero, como falei pra ele [Jorge Teixeira], que se existe justiça, que ela esteja do nosso lado, que a gente venha conseguir as nossas coisas de volta, porque está tudo perdido, se acabando: minha estante já não tem mais nenhum pedaço, a água já levou tudo, meu guarda roupa, tudo lá no terreiro jogado”, desabafa.
Autonomia
O casal de ribeirinhos vive do que produz no lote. Valdely relata que possui uma grande quantidade de árvores frutíferas como caju, coqueiro, banana, mas é do açaí que a família tira sua subsistência, além dos pequenos serviços que o marido faz como carpinteiro. Depois que a casa de madeira foi derrubada a família foi acolhida na casa de parentes que também moram na ilha.
Antes da criação do assentamento metade de tudo o que o casal produzia era vendido para Teixeira, que solicitou a ação de despejo, numa condição de meeiro – relação estabelecida pelo suposto dono da terra que concede a uma família o direito de morar num terreno em troca de metade de tudo que for produzido.
Valdely ainda lembra que “se uma saca de açaí era 100 reais, ele só pagava 30” e completa “e ai de quem vendesse para outra pessoa”.
Com a criação do assentamento, diversas famílias ganharam autonomia nas suas produções e passaram a não manter mais essa condição.
A reportagem do Brasil de Fato entrou em contato com o advogado de Arlete Moreira e do "Coronel" Teixeira, como é conhecido, mas não houve posicionamento sobre os fatos relatados até a publicação desta reportagem.
Cadastro
Irineu Pinheiro, presidente do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Afuá (STTR), avalia que os conflitos causados por pessoas que afirmam ser donas de terras se intensificou depois que foi criado o Cadastro Ambiental Rural (CAR).
”Há pessoas que agem de má fé, que fazem esse CAR de maneira individual e também se sobrepõem dentro da área, diz que tem uma determinada área e faz um CAR em cima dessa área, que muitas vezes são em áreas muito extensas e que ocasionam esses conflitos”.
O CAR é um registro público eletrônico criado pelo governo federal com o objetivo de traçar um mapa digital a partir de informações georreferenciados de imóveis rurais e assim realizar um diagnóstico ambiental das áreas. Apesar da ferramenta integrar um processo de regularização fundiária o cadastro não concede título da terra, ainda que venha sendo utilizado como tal.
O presidente do sindicato acredita que o conflito se acirra quando são feitos cadastros individuais em cima de CAR de assentamentos, como é o caso da Ilha dos Carás. Sobre essa situação, a reportagem do Brasil de Fato já denunciou casos de CAR sobrepostos em áreas de comunidades tradicionais.
Em março, a vara agrária de Castanhal do Ministério Público (MP) emitiu uma recomendação à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) para que cancele os cadastros individuais “incidentes em Projetos de Assentamento Agroextrativistas, Territórios Quilombolas e demais áreas coletivas, com regularização fundiária já concluída”.
Ainda segundo o documento, “após a coleta de dados junto a diversos Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do Marajó” foi verificado que o CAR “tem sido utilizado de má fé na tentativa de intimidar famílias e mesmo grilar terras na região”.
O STTR ainda não teve acesso ao processo judicial do despejo para verificar quais documentos foram apresentados para justificar o despejo perante a Justiça.
Medidas
O Incra no Pará comunicou que solicitou à Semas “o cancelamento imediato do Cadastro Ambiental Rural (CAR) sobreposto à área do Projeto Agroextrativista Ilha Carás, bem como de todos os outros CAR feitos por terceiros” e a “suspensão dos despejos de famílias que fazem parte da relação de beneficiários de projetos agroextrativistas, e de envio dos respectivos processos para a esfera federal”.
Além disso, a Superintendência Regional também requereu à Superintendência do Patrimônio da União no Pará (SPU-PA) “que proceda a análise de documentos apresentados por quem se diz proprietário de imóveis em áreas de Projetos Agroextrativistas para que o órgão, vinculado ao Ministério do Planejamento e Gestão, responsável pela gestão de bens imóveis e móveis da União, determine ou não a validade legal desses documentos”.
Edição: Juca Guimarães